Esse artigo é a terceira aula e a continuação da segunda aula do livro Naming and Necessity, do autor Saul Aaron Kripke
O que foi realizado, se é que algo foi, até agora? Primeiro, eu argumentei que uma visão popular sobre como os nomes obtêm sua referência, de modo geral, não se aplica. De modo geral, não é o caso que a referência de um nome seja determinada por algum conjunto de características unicamente identificadoras — algumas propriedades únicas satisfeitas pelo referente e conhecidas ou acreditadas como verdadeiras sobre esse referente pelo falante. Primeiro, as propriedades acreditadas pelo falante não precisam ser unicamente especificadoras. Segundo, mesmo quando são, elas podem não ser unicamente verdadeiras do referente real do uso do falante, mas de outra coisa ou de nada. Isso ocorre quando o falante tem crenças errôneas sobre uma pessoa. Ele não tem crenças corretas sobre outra pessoa, mas crenças errôneas sobre uma certa pessoa. Nesses casos, a referência parece ser determinada, na verdade, pelo fato de o falante ser membro de uma comunidade de falantes que usam o nome. O nome lhe foi transmitido por tradição, de elo em elo.
Em segundo lugar, eu argumentei que, mesmo que em alguns casos especiais — notavelmente alguns casos de batismo inicial — um referente seja determinado por uma descrição, por alguma propriedade unicamente identificadora, o que essa propriedade faz, em muitos casos de designação, não é fornecer um sinônimo, algo para o qual o nome seja uma abreviação; mas sim, fixar uma referência. Ela fixa a referência por meio de marcas contingentes do objeto. O nome que denota esse objeto é então usado para se referir a esse objeto, mesmo ao referir-se a situações contrafactuais onde o objeto não possui as propriedades em questão. Um exemplo foi o caso de um metro-padrão.
Finalmente, ao final da última palestra, estávamos falando sobre declarações de identidade. Declarações de identidade deveriam parecer muito simples, mas de algum modo são muito intrigantes para os filósofos. Eu não posso ter certeza, no meu próprio caso, se consegui esclarecer todas as confusões possíveis que podem ser geradas por essa relação. Alguns filósofos acharam a relação tão confusa que a modificaram. Por exemplo, acredita-se que, se você tem dois nomes como ‘Cícero’ e ‘Túlio’ e diz que Cícero é Túlio, você não pode realmente estar dizendo que o objeto que é tanto Cícero quanto Túlio é idêntico a si mesmo. Pelo contrário, ‘Cícero é Túlio’ pode expressar uma descoberta empírica, como já mencionamos. Assim, alguns filósofos, inclusive Frege em uma fase inicial de seus escritos, consideraram que a identidade seria uma relação entre nomes. Identidade, eles dizem, não é a relação entre um objeto e si mesmo, mas é a relação que existe entre dois nomes quando eles designam o mesmo objeto.
Isso ocorre até mesmo na literatura mais recente. Eu não trouxe o livro, mas J. B. Rosser, o distinto lógico, escreve em seu livro *Logic for Mathematicians* que dizemos que x = y se e somente se ‘x’ e ‘y’ são nomes do mesmo objeto. Ele observa que a afirmação correspondente sobre o próprio objeto — que ele de nenhuma forma difere de si mesmo — é, claro, trivial; e, portanto, presumivelmente, não pode ser isso o que queremos dizer. Esse é um paradigma especialmente incomum de como a relação de identidade deveria ser, pois ela se aplicaria muito raramente. Pelo que sei, fora do movimento militante do nacionalismo negro, ninguém jamais se chamou ‘x’. Falando seriamente, claro, ‘x’ e ‘y’ na sentença aberta ‘x = y’ não são nomes de fato, são variáveis. E elas podem ocorrer com identidade como variáveis ligadas em uma sentença fechada. Se você disser: “para todo x e y, se x = y então r = x”, ou algo assim — nenhum nome ocorre nessa afirmação, nem se diz nada sobre nomes. Essa afirmação seria verdadeira mesmo que a raça humana nunca tivesse existido ou, embora tenha existido, nunca tivesse produzido o fenômeno dos nomes.
Se alguém algum dia se inclinar para essa concepção particular de identidade, suponhamos que concedêssemos essa concepção a ele. Suponha que a identidade fosse uma relação, em inglês, entre os nomes. Eu introduzirei uma relação artificial chamada ‘schmidentidade’ (não é uma palavra do inglês), que agora estipulo que ocorre apenas entre um objeto e ele mesmo. Agora então, a questão de saber se Cícero é schmidental com Túlio pode surgir, e se surgir, os mesmos problemas aparecerão para essa afirmação como se pensava no caso da afirmação original de identidade, levando à crença de que essa era uma relação entre os nomes. Se alguém refletir seriamente sobre isso, penso que perceberá que, portanto, provavelmente sua concepção original de identidade não era necessária e provavelmente nem possível para resolver os problemas para os quais foi originalmente proposta, e que, portanto, ela deve ser abandonada, e a identidade deve ser considerada apenas como a relação entre uma coisa e ela mesma. Esse tipo de recurso pode ser usado para vários problemas filosóficos.
Concluímos que uma declaração de identidade entre nomes, quando verdadeira, é necessariamente verdadeira, embora alguém possa não sabê-lo a priori. Suponhamos que identifiquemos Héspero como uma certa estrela vista à noite e Lúcifer como uma certa estrela, ou corpo celeste, visto pela manhã; então pode haver mundos possíveis em que dois planetas diferentes teriam sido vistos exatamente nessas posições à noite e de manhã. No entanto, pelo menos um deles, e talvez ambos, não seria Héspero, e então essa não seria uma situação na qual Héspero não fosse Lúcifer. Poderia ser uma situação na qual o planeta visto nessa posição à noite não fosse o planeta visto nessa posição de manhã; mas isso não é uma situação na qual Héspero não fosse Lúcifer. Poderia também ser, se as pessoas tivessem dado os nomes ‘Héspero’ e ‘Lúcifer’ a esses planetas, uma situação na qual algum planeta diferente de Héspero fosse chamado de ‘Héspero’. Mas, mesmo assim, não seria uma situação na qual Héspero em si não fosse Lúcifer.
Alguns dos problemas que incomodam as pessoas nessas situações, como eu disse, vêm de uma identificação, ou como eu colocaria, uma confusão, entre o que podemos saber a priori e o que é necessário. Certas afirmações — e a afirmação de identidade é um paradigma de tal afirmação na minha visão —, se verdadeiras, devem ser necessariamente verdadeiras. Sabe-se a priori, por análise filosófica, que se tal afirmação de identidade é verdadeira, ela é necessariamente verdadeira.
Uma qualificação: quando eu digo que ‘Héspero é Lúcifer’ é necessariamente verdadeiro, claro que não nego que poderiam ter existido situações nas quais não houvesse tal planeta como Vênus, e, portanto, nem Héspero nem Lúcifer. Nesse caso, há a questão de saber se a afirmação de identidade ‘Héspero é Lúcifer’ seria verdadeira, falsa ou nem verdadeira nem falsa. E se tomarmos a última opção, ‘Héspero = Lúcifer’ é necessário porque nunca é falso, ou deveríamos exigir que uma verdade necessária fosse verdadeira em todos os mundos possíveis? Estou deixando tais problemas completamente fora das minhas considerações aqui. Se quisermos ser um pouco mais cuidadosos, poderíamos substituir a afirmação ‘Héspero é Lúcifer’ pela condicional: ‘Se Héspero existe, então Héspero é Lúcifer’, tomando cautelosamente apenas esta última como necessária. Infelizmente, essa condicional nos envolve no problema das atribuições singulares de existência, um que não posso discutir aqui. Em particular, filósofos simpáticos à teoria descritiva da nomeação frequentemente argumentam que nunca se pode dizer de um objeto que ele existe. Uma suposta afirmação sobre a existência de um objeto é, segundo se argumenta, na verdade uma afirmação sobre se uma certa descrição ou propriedade é satisfeita. Como já disse, discordo disso. De qualquer forma, não posso realmente entrar nos problemas da existência aqui.
Quero mencionar neste ponto que outras considerações sobre modalidade de re (isto é, sobre um objeto possuir propriedades essenciais) só podem ser corretamente consideradas, na minha visão, se reconhecermos a distinção entre a priori e necessidade. Pode-se muito bem descobrir a essência empiricamente.
Há alguns exemplos de supostas propriedades essenciais em um artigo de Timothy Sprigge.
“‘Em nenhum momento de sua existência’ e ‘sempre’ são justificativas que Sprigge, presumivelmente, introduz para permitir possibilidades como a de ela, neste exato momento, ser transformada em um cisne — por uma bruxa malvada, eu suponho. (Ou uma bruxa benigna.)
Uma confusão que encontro nesta discussão é que, no primeiro caso, Sprigge fala sobre se haveria alguma contradição em supor que tivéssemos um anúncio de que a Rainha nasceu de pais diferentes dos que ela realmente teve. E nisso, não há contradição. Da mesma forma, porém, não há contradição em um anúncio de que a Rainha, essa coisa que pensávamos ser uma mulher, era, na verdade, um anjo em forma humana ou um autômato habilidosamente construído pela família real, que não queria que a sucessão passasse para aquele bastardo fulano de tal, ou algo assim. Nenhum desses anúncios representa coisas que não poderíamos possivelmente descobrir. Qual é a pergunta que estamos fazendo quando perguntamos se é necessário, a respeito dessa mulher, que ela devesse ter sangue real ou devesse ser humana? O sangue real é um pouco complicado, porque, para que fosse necessário que ela tivesse sangue real, teria que ser necessário que essa linha familiar específica, em algum momento, alcançasse o poder real; mas esse último fato parece ser contingente. Portanto, suponho que é contingente que seu sangue tenha sido, em algum momento, real.
Vamos tentar reformular um pouco a questão. A pergunta realmente deveria ser, digamos: a Rainha — essa mulher em si — poderia ter nascido de pais diferentes dos pais de quem ela realmente veio? Ela poderia, digamos, ter sido filha do Sr. e da Sra. Truman? Não haveria contradição, é claro, em um anúncio de que (espero que as idades não tornem isso impossível), por mais fantástico que pareça, ela era de fato filha do Sr. e da Sra. Truman. Suponho que não haveria sequer contradição na descoberta de que — parece muito suspeito, de qualquer forma, que em ambas as hipóteses ela tenha uma irmã chamada Margaret — essas duas Margarets fossem uma e a mesma pessoa viajando de um lado para o outro de maneira engenhosa. De qualquer forma, podemos imaginar descobrir todas essas coisas.
Mas vamos supor que tal descoberta não seja, de fato, o caso. Suponhamos que a Rainha realmente veio desses pais. Para não complicar muito a questão do que é um pai, vamos supor que os pais sejam as pessoas cujos tecidos corporais são as fontes do esperma e do óvulo biológicos. Assim eliminamos possibilidades mais rebuscadas, como transplantes do esperma do pai ou do óvulo da mãe em outros corpos, de modo que, em certo sentido, outras pessoas poderiam ter sido seus pais. Se isso acontecesse, em outro sentido, seus pais ainda seriam o rei e a rainha originais. Mas, além disso, podemos imaginar uma situação em que teria acontecido que essa própria mulher nascesse do Sr. e da Sra. Truman? Eles poderiam ter tido uma filha que se assemelhasse a ela em muitas propriedades. Talvez, em algum mundo possível, o Sr. e a Sra. Truman até tivessem uma filha que realmente se tornasse a Rainha da Inglaterra e fosse até apresentada como filha de outros pais. Ainda assim, isso não seria uma situação em que essa própria mulher, a quem chamamos ‘Elizabeth II’, fosse filha do Sr. e da Sra. Truman — ou assim me parece. Seria uma situação em que havia outra mulher que tinha muitas das propriedades que, de fato, são verdadeiras sobre Elizabeth. Agora, uma pergunta é: nesse mundo possível, Elizabeth em si chegou a nascer? Suponhamos que ela nunca tenha nascido. Seria então uma situação em que, embora Truman e sua esposa tivessem uma filha com muitas das propriedades de Elizabeth, Elizabeth em si não existiria de forma alguma. Só se pode se convencer disso refletindo sobre como você descreveria essa situação. (Isso, suponho, significa que, em muitos casos, você não se convencerá disso, pelo menos não neste momento. Mas é algo do qual, pessoalmente, eu me convenci.)
Como poderia uma pessoa originada de pais diferentes, de um esperma e óvulo totalmente diferentes, ser essa mesma mulher? Pode-se imaginar, dada a mulher, que várias coisas em sua vida poderiam ter mudado: que ela tivesse se tornado uma pobre; que seu sangue real fosse desconhecido, e assim por diante. Suponhamos que temos, digamos, uma história anterior do mundo até certo momento, e a partir desse momento ela diverge consideravelmente do curso real. Isso parece ser possível. E assim é possível que, mesmo tendo nascido desses pais, ela nunca tenha se tornado rainha. Mesmo tendo nascido desses pais, como a personagem de Mark Twain, ela foi trocada por outra menina. Mas o que é mais difícil de imaginar é ela ter nascido de pais diferentes. Parece-me que qualquer coisa vinda de uma origem diferente não seria este objeto.
No caso desta mesa, podemos não saber de qual bloco de madeira a mesa veio. Agora, essa mesa poderia ter sido feita de um bloco de madeira completamente diferente ou até de água habilidosamente endurecida em gelo — água tirada do rio Tâmisa? Poderíamos conceber descobrir que, ao contrário do que agora pensamos, essa mesa é de fato feita de gelo do rio. Mas suponhamos que não seja. Então, embora possamos imaginar fabricar uma mesa de outro bloco de madeira ou até de gelo, idêntica em aparência a esta, e embora pudéssemos tê-la colocado exatamente nesta posição na sala, parece-me que isso não é imaginar esta mesa feita de outra madeira ou gelo, mas sim imaginar outra mesa, semelhante a esta em todos os detalhes externos, feita de outro bloco de madeira ou até de gelo. Esses são apenas exemplos de propriedades essenciais. Não me demorarei mais neles porque quero passar ao caso mais geral, que mencionei na última palestra, de algumas identidades entre termos de substâncias e também as propriedades de substâncias e de tipos naturais. Filósofos têm, como eu disse, estado muito interessados em declarações que expressam identificações teóricas; entre elas, que a luz é um fluxo de fótons, que a água é H₂O, que o raio é uma descarga elétrica, que o ouro é o elemento com número atômico 79.
Para esclarecer o status dessas declarações, talvez precisemos primeiro refletir sobre o status de substâncias como o ouro. O que é ouro? Não sei se este é um exemplo que interessou particularmente os filósofos. Seu interesse nos círculos financeiros está diminuindo por causa da maior estabilidade das moedas. Mesmo assim, o ouro interessou a muitas pessoas. Aqui está o que Immanuel Kant diz sobre o ouro. (Ele era um especulador rico que guardava seus bens debaixo da cama.) Kant está introduzindo a distinção entre juízos analíticos e sintéticos, e ele diz: ‘Todos os juízos analíticos dependem inteiramente da lei da contradição e são, por sua natureza, conhecimentos a priori, quer os conceitos que lhes fornecem a matéria sejam empíricos ou não. Pois o predicado de um juízo analítico afirmativo já está contido no conceito do sujeito, do qual não pode ser negado sem contradição. … Por essa mesma razão, todos os juízos analíticos são a priori mesmo quando os conceitos são empíricos, como, por exemplo, “O ouro é um metal amarelo”; pois, para saber isso, não necessito de experiência além do meu conceito de ouro como um metal amarelo. É, de fato, o próprio conceito, e só preciso analisá-lo sem olhar além dele.’ Eu deveria ter consultado o alemão. ‘É, de fato, o próprio conceito’ soa como se Kant estivesse dizendo aqui que ‘ouro’ simplesmente significa ‘metal amarelo’. Se ele diz isso, então é especialmente estranho, então vamos supor que não é isso que ele está dizendo. Pelo menos Kant acha que é parte do conceito que o ouro deva ser um metal amarelo. Ele acha que sabemos isso a priori e que não poderíamos possivelmente descobrir que isso é empiricamente falso.
Kant está certo sobre isso? Primeiro, o que eu teria querido fazer seria discutir a parte sobre o ouro ser um metal. Isso, no entanto, é complicado porque, primeiro, eu não sei muita química. Investigando isso há alguns dias em apenas algumas referências, encontrei em um relato mais fenomenológico dos metais a afirmação de que é muito difícil dizer o que é um metal. (Fala-se de maleabilidade, ductilidade e similares, mas nenhuma dessas características funciona exatamente.) Por outro lado, algo sobre a tabela periódica deu uma descrição de elementos como metais em termos de suas propriedades de valência. Isso pode levar algumas pessoas a pensar imediatamente que realmente há dois conceitos de metal operando aqui — um fenomenológico e um científico, que então o substitui. Isso eu rejeito, mas como essa interpretação tentará muitos, e só pode ser refutada depois que eu desenvolver minhas próprias visões, não será adequado usar ‘Ouro é um metal’ como exemplo para introduzir essas visões.
Mas vamos considerar algo mais simples — a questão da cor amarela do ouro. Poderíamos descobrir que o ouro não é de fato amarelo? Suponha que uma ilusão de ótica fosse prevalente, devido a propriedades peculiares da atmosfera na África do Sul e na Rússia e em certas outras áreas onde minas de ouro são comuns. Suponha que houvesse uma ilusão de ótica que fizesse a substância parecer amarela; mas, de fato, uma vez removidas as propriedades peculiares da atmosfera, veríamos que ela é, na verdade, azul. Talvez um demônio até corrompesse a visão de todos que entrassem nas minas de ouro (obviamente, suas almas já estavam corrompidas) e assim os fizesse acreditar que essa substância era amarela, embora não fosse. Haveria, com base nisso, um anúncio nos jornais: ‘Descobriu-se que não há ouro. O ouro não existe. O que tomávamos por ouro não é, de fato, ouro.’? Apenas imagine a crise financeira mundial sob essas condições!”
Parece-me que não haveria tal anúncio. Pelo contrário, o que seria anunciado é que, embora parecesse que o ouro fosse amarelo, na verdade descobriu-se que o ouro não é amarelo, mas azul. A razão, eu acho, é que usamos “ouro” como um termo para um certo tipo de coisa. Outros descobriram esse tipo de coisa e ouvimos falar dela. Assim, como parte de uma comunidade de falantes, temos uma certa conexão entre nós e um certo tipo de coisa. Supõe-se que esse tipo de coisa tenha certas marcas identificadoras. Algumas dessas marcas podem não ser realmente verdadeiras sobre o ouro. Podemos descobrir que estávamos errados sobre elas. Além disso, pode haver uma substância que tenha todas as marcas identificadoras que normalmente atribuíamos ao ouro e que usávamos para identificá-lo inicialmente, mas que não seja o mesmo tipo de coisa, que não seja a mesma substância. Diríamos de tal coisa que, embora tenha todas as aparências que usamos inicialmente para identificar o ouro, não é ouro. Tal coisa é, por exemplo, como bem sabemos, a pirita de ferro ou “ouro dos tolos”. Isso não é outro tipo de ouro. É uma coisa completamente diferente que, para uma pessoa leiga, parece exatamente a substância que descobrimos e chamamos de ouro. Podemos dizer isso não porque mudamos o significado do termo “ouro” e adicionamos outros critérios que distinguem o ouro da pirita. Parece-me que isso não é verdade. Pelo contrário, descobrimos que certas propriedades eram verdadeiras sobre o ouro além das marcas iniciais pelas quais o identificávamos. Essas propriedades, então, sendo características do ouro e não verdadeiras da pirita de ferro, mostram que o “ouro dos tolos” na verdade não é ouro.
Devemos analisar isso em outro exemplo. Diz-se em algum lugar aqui: *“Eu digo ‘A palavra ‘tigre’ tem significado em inglês’…”*. Se então me perguntarem “O que é um tigre?”, eu poderia responder “Um tigre é um grande felino quadrúpede carnívoro, de cor amarela dourada com listras transversais negras e ventre branco” (derivado da entrada sobre “tigre” no *Shorter Oxford English Dictionary*). E agora suponha que alguém diga “Você acabou de dizer o que a palavra ‘tigre’ significa em inglês.” E Ziff pergunta, “É mesmo?” e ele diz, corretamente, “Acho que não.” O exemplo dele é: “Suponha que numa clareira da selva alguém diga ‘olhe, um tigre de três patas!’: a pessoa deve se confundir? A frase ‘um tigre de três patas’ não é uma contradição em termos (*contradictio in adjecto*). Mas se ‘tigre’ em inglês significasse, entre outras coisas, ‘quadrúpede’, a frase ‘um tigre de três patas’ seria necessariamente uma contradição.” Assim, o exemplo dele mostra que, se fizer parte do conceito de tigre que um tigre tenha quatro patas, não poderia haver um tigre de três patas.
Esse é o tipo de caso que muitos filósofos tendem a explicar como um “conceito de cluster” (*cluster concept*). Seria sequer uma contradição supor que deveríamos descobrir que tigres nunca tiveram quatro patas? Suponha que os exploradores que atribuíram essas propriedades aos tigres tenham sido enganados por uma ilusão de ótica, e que os animais que viram fossem de uma espécie de três patas — então diríamos que não existiram tigres, afinal? Acho que diríamos que, apesar da ilusão de ótica que enganou os exploradores, tigres de fato têm três patas.
Além disso, é verdade que qualquer coisa que satisfaça essa descrição no dicionário é necessariamente um tigre? Parece-me que não. Suponha que descubramos um animal que, embora tenha todas as aparências externas de um tigre conforme descrito, tenha uma estrutura interna completamente diferente da do tigre. Na verdade, a palavra “felino” foi incluída aqui, então não é totalmente justo. Suponhamos que ela tenha sido deixada de fora, para este exemplo. Que um tigre pertença a uma família biológica particular, de qualquer forma, foi algo que descobrimos. Se “felino” significar apenas ter a aparência de um gato, vamos supor que ele tenha a aparência de um grande gato. Podemos encontrar animais em alguma parte do mundo que, embora pareçam exatamente como um tigre, ao serem examinados, descubra-se que nem sequer são mamíferos. Digamos que sejam, de fato, répteis de aparência muito peculiar. Concluiríamos então, com base nessa descrição, que alguns tigres são répteis? Não. Concluiríamos, antes, que esses animais, embora tenham as marcas externas pelas quais originalmente identificamos tigres, não são de fato tigres, porque não pertencem à mesma espécie que chamamos de “espécie de tigres”.
Agora, isso, penso eu, não ocorre porque, como alguns diriam, o velho conceito de tigre foi substituído por uma nova definição científica. Acho que isso é verdadeiro para o conceito de tigre antes de a estrutura interna dos tigres ter sido investigada. Mesmo que não saibamos a estrutura interna dos tigres, supomos — e suponhamos que estejamos certos — que os tigres formam uma certa espécie ou tipo natural. Podemos então imaginar que haja uma criatura que, embora tenha toda a aparência externa dos tigres, difira deles internamente o suficiente para que digamos que não é o mesmo tipo de coisa. Podemos imaginar isso sem saber nada sobre essa estrutura interna — o que ela é. Podemos dizer de antemão que usamos o termo “tigre” para designar uma espécie, e que qualquer coisa que não seja dessa espécie, mesmo que pareça um tigre, não é de fato um tigre. Assim como algo pode ter todas as propriedades pelas quais originalmente identificamos tigres e ainda assim não ser um tigre, também podemos descobrir que os tigres não tinham nenhuma das propriedades pelas quais os identificamos inicialmente. Talvez nenhum seja quadrúpede, nenhum seja amarelo dourado, nenhum seja carnívoro e assim por diante; todas essas propriedades acabam por ser baseadas em ilusões de ótica ou outros erros, como no caso do ouro.
Portanto, o termo “tigre”, como o termo “ouro”, não marca um “conceito de cluster” no qual a maioria, mas talvez não todas, das propriedades usadas para identificar o tipo deva ser satisfeita. Pelo contrário, possuir a maioria dessas propriedades não precisa ser uma condição necessária para pertencer ao tipo, nem precisa ser uma condição suficiente.
Uma vez que descobrimos que os tigres de fato, como suspeitávamos, formam um único tipo, então algo que não pertence a esse tipo não é um tigre. Claro, podemos estar enganados ao supor que existe tal tipo. De antemão, supomos que provavelmente formem um tipo. A experiência passada mostrou que geralmente coisas assim, vivendo juntas, parecendo-se, acasalando-se entre si, formam um tipo. Se houver dois tipos de tigres que tenham algo a ver um com o outro, mas não tanto quanto pensávamos, então talvez formem uma família biológica maior. Se não tiverem absolutamente nada a ver um com o outro, então há realmente dois tipos de tigres. Isso tudo depende da história e do que realmente descobrimos.
O filósofo que mais reconhece esse tipo de consideração (nossos pensamentos sobre esses assuntos se desenvolveram independentemente) é Putnam. Em um artigo chamado *”It Ain’t Necessarily So”*, ele diz, sobre declarações sobre espécies, que elas são “menos necessárias” (como ele diz cautelosamente) do que declarações como “solteiros não são casados”. O exemplo que ele dá é “gatos são animais”. Gatos poderiam acabar sendo autômatos, ou demônios estranhos (não é o exemplo dele) plantados por um mago. Suponha que acabassem sendo uma espécie de demônios. Então, na visão dele — e acho que também na minha — a inclinação seria dizer, não que acabou não havendo gatos, mas que os gatos acabaram não sendo animais como originalmente supusemos. O conceito original de gato é: aquele tipo de coisa, onde o tipo pode ser identificado por instâncias paradigmáticas. Não é algo selecionado por qualquer definição qualitativa de dicionário.
No entanto, a conclusão de Putnam é que declarações como “gatos são animais” são “menos necessárias” do que declarações como “solteiros são não casados”. Certamente concordo que o argumento indica que tais declarações não são conhecidas *a priori* e, portanto, não são analíticas; se um dado tipo é uma espécie de animal é uma questão para investigação empírica. Talvez esse sentido epistemológico seja o que Putnam quer dizer por “necessário”. A questão permanece se tais declarações são necessárias no sentido não-epistemológico defendido nestas palestras. Assim, a próxima coisa a investigar é (usando o conceito de necessidade de que falei): são declarações como “gatos são animais”, ou declarações como “ouro é um metal amarelo”, necessárias?
Até agora eu só estive falando sobre o que poderíamos descobrir. Eu estive dizendo que poderíamos descobrir que o ouro não era de fato amarelo, ao contrário do que pensávamos. Se alguém fosse mais a fundo no conceito de metais, digamos em termos de propriedades de valência, certamente poderia descobrir que, embora se considerasse o ouro como um metal, o ouro não é de fato um metal. É necessário ou contingente que o ouro seja um metal? Não quero entrar em detalhes sobre o conceito de metal — como eu disse, não sei o suficiente sobre isso. O ouro aparentemente tem o número atômico 79. É uma propriedade necessária ou contingente do ouro ter o número atômico 79? Certamente poderíamos descobrir que estávamos enganados. Toda a teoria dos prótons, dos números atômicos, toda a teoria da estrutura molecular e da estrutura atômica, sobre a qual tais visões se baseiam, poderia acabar sendo falsa. Certamente não sabíamos disso desde tempos imemoriais. Assim, nesse sentido, o ouro poderia acabar não tendo o número atômico 79.
Dado que o ouro realmente possui o número atômico 79, algo poderia ser ouro sem ter o número atômico 79?
Suponhamos que os cientistas investigaram a natureza do ouro e descobriram que faz parte da própria natureza dessa substância, por assim dizer, ter o número atômico 79. Suponha agora que encontremos algum outro metal amarelo, ou alguma outra coisa amarela, com todas as propriedades pelas quais originalmente identificamos o ouro, e muitas das propriedades adicionais que descobrimos depois. Um exemplo de algo com muitas das propriedades iniciais é a pirita de ferro, o chamado “ouro dos tolos”. Como eu disse, não diríamos que essa substância é ouro. Até aqui estamos falando do mundo real. Agora, considere um mundo possível. Considere uma situação contrafactual na qual, digamos, a pirita ou a pirita de ferro fosse realmente encontrada em várias montanhas dos Estados Unidos ou em áreas da África do Sul e da União Soviética. Suponha que todas as áreas que atualmente contêm ouro, contivessem pirita ou alguma outra substância que imitasse as propriedades superficiais do ouro, mas que não tivesse sua estrutura atômica. Diríamos, dessa situação contrafactual, que, nessa situação, o ouro nem sequer teria sido um elemento (porque a pirita não é um elemento)? Parece-me que não. Em vez disso, descreveríamos isso como uma situação na qual uma substância — digamos, a pirita de ferro — que não é ouro, teria sido encontrada exatamente nas montanhas que atualmente contêm ouro e teria tido exatamente as propriedades pelas quais normalmente identificamos o ouro. Mas não seria ouro; seria outra coisa. Não se deve dizer que ainda seria ouro nesse mundo possível, embora o ouro, nesse caso, não tivesse o número atômico 79. Seria outra matéria, outra substância.
Portanto, parece-me que este não seria um caso no qual, possivelmente, o ouro poderia não ter sido um elemento, nem pode haver tal caso (exceto no sentido epistêmico de “possível”). Dado que o ouro é esse elemento, qualquer outra substância, mesmo que se pareça com o ouro e seja encontrada exatamente nos lugares onde de fato encontramos ouro, não seria ouro. Seria outra substância que falsificaria o ouro. Em qualquer situação contrafactual onde as mesmas áreas geográficas estivessem preenchidas com tal substância, elas não estariam preenchidas com ouro. Estariam preenchidas com outra coisa.
Se essa consideração estiver correta, ela tende a mostrar que tais afirmações que representam descobertas científicas sobre o que essa substância é não são verdades contingentes, mas verdades necessárias no sentido mais estrito possível. Não se trata apenas de ser uma lei científica, mas claro que podemos imaginar um mundo no qual ela falharia. Qualquer mundo no qual imaginamos uma substância que não tenha essas propriedades é um mundo no qual imaginamos uma substância que não é ouro, desde que essas propriedades formem a base do que a substância é. Em particular, a teoria científica atual é tal que faz parte da natureza do ouro, como o conhecemos, ser um elemento com o número atômico 79. Portanto, será necessário e não contingente que o ouro seja um elemento com o número atômico 79.
(Da mesma forma, podemos investigar como a cor e as propriedades metálicas derivam do que descobrimos que é a substância ouro: na medida em que tais propriedades derivam da estrutura atômica do ouro, elas são propriedades necessárias dele, embora indubitavelmente não façam parte do significado de “ouro” e não fossem conhecidas com certeza a priori.)
O exemplo de Putnam — “gatos são animais” — entra no mesmo tipo de questão. De fato, fizemos uma descoberta muito surpreendente nesse caso. Descobrimos que nada contradiz nossa crença. Os gatos de fato são animais! Então, essa verdade é uma verdade necessária ou contingente? Parece-me que é necessária. Considere a situação contrafactual na qual, no lugar dessas criaturas — esses animais —, temos de fato pequenos demônios que, quando se aproximam de nós, realmente trazem má sorte. Deveríamos descrever isso como uma situação em que os gatos eram demônios? Parece-me que esses demônios não seriam gatos. Eles seriam demônios com forma semelhante à de um gato. Poderíamos ter descoberto que os gatos reais que temos são demônios. Mas uma vez que descobrimos que não são, faz parte da própria natureza deles que, ao descrevermos um mundo contrafactual no qual tais demônios existissem, devamos dizer que os demônios não seriam gatos. Seria um mundo contendo demônios disfarçados de gatos. Embora possamos dizer que os gatos poderiam ter se revelado demônios de uma certa espécie, dado que os gatos de fato são animais, qualquer ser semelhante a um gato que não seja um animal, no mundo real ou em um contrafactual, não é um gato. O mesmo vale até para animais com aparência de gato mas com estrutura interna reptiliana. Se existissem, não seriam gatos, mas “gatos dos tolos”.
Isso também tem relação com a essência de um objeto particular. A teoria molecular descobriu, digamos, que este objeto aqui é composto de moléculas. Certamente foi uma descoberta empírica importante. Era algo que não sabíamos de antemão; talvez isso pudesse ter sido composto, por tudo que sabíamos, de alguma enteléquia etérea. Agora imagine um objeto ocupando exatamente esta posição na sala que fosse uma enteléquia etérea. Seria este mesmo objeto aqui? Ele poderia ter toda a aparência deste objeto, mas parece-me que nunca poderia ser esta coisa. As vicissitudes desta coisa poderiam ter sido muito diferentes da sua história real. Ela poderia ter sido transportada para o Kremlin. Poderia já ter sido cortada em pedaços e não mais existir no momento presente. Várias coisas poderiam ter acontecido a ela. Mas, qualquer que seja a situação contrafactual que imaginemos ter acontecido a ela, além do que realmente ocorreu, a única coisa que não podemos imaginar acontecendo a esta coisa é que ela, dado que é composta de moléculas, ainda existisse e não fosse composta de moléculas. Podemos imaginar ter descoberto que ela não era composta de moléculas. Mas, uma vez que sabemos que esta é uma coisa composta de moléculas — que esta é a própria natureza da substância da qual é feita —, não podemos então, ao menos se a forma como vejo isso estiver correta, imaginar que esta coisa poderia não ter sido composta de moléculas.
De acordo com a visão que defendo, então, termos para tipos naturais estão muito mais próximos de nomes próprios do que se costuma supor. O antigo termo “nome comum” é, portanto, bastante apropriado para predicados que designam espécies ou tipos naturais, como “vaca” ou “tigre”. Minhas considerações também se aplicam, no entanto, a certos termos de massa para tipos naturais, como “ouro”, “água” e semelhantes.
É interessante comparar minhas opiniões com as de Mill. Mill considera tanto predicados como “vaca”, descrições definidas e nomes próprios como nomes. Ele diz que os nomes “singulares” são conotativos se forem descrições definidas, mas não conotativos se forem nomes próprios. Por outro lado, Mill afirma que todos os nomes “gerais” são conotativos; um predicado como “ser humano” é definido como a conjunção de certas propriedades que dão condições necessárias e suficientes para a humanidade — racionalidade, animalidade e certas características físicas.
A tradição lógica moderna, representada por Frege e Russell, parece sustentar que Mill estava errado sobre nomes singulares, mas certo sobre nomes gerais. A filosofia mais recente seguiu essa linha, exceto que, no caso tanto de nomes próprios quanto de termos de espécie natural, frequentemente substitui a noção de propriedades definidoras pela de um conjunto (ou *cluster*) de propriedades, das quais apenas algumas precisam ser satisfeitas em cada caso particular.
Minha própria visão, por outro lado, considera Mill mais ou menos correto sobre nomes “singulares”, mas errado sobre nomes “gerais”. Talvez alguns nomes “gerais” (“tolo”, “gordo”, “amarelo”) expressem propriedades. Em um sentido significativo, nomes gerais como “vaca” e “tigre” não expressam (a menos que ser uma vaca conte trivialmente como uma propriedade). Certamente, “vaca” e “tigre” não são abreviações da conjunção de propriedades que um dicionário consideraria como suas definições, como Mill pensava.
Se a ciência pode descobrir empiricamente que certas propriedades são necessárias para vacas ou tigres é outra questão, à qual respondo afirmativamente.
Vamos considerar como isso se aplica aos tipos de afirmações de identidade que expressam descobertas científicas das quais falei antes — por exemplo, que a água é H₂O. Certamente representa uma descoberta que a água é H₂O. Identificamos a água originalmente por sua sensação característica, aparência e talvez gosto (embora o gosto geralmente se deva às impurezas). Se houvesse uma substância, mesmo de fato, que tivesse uma estrutura atômica completamente diferente da da água, mas que se assemelhasse à água nesses aspectos, diríamos que alguma água não era H₂O? Eu acho que não. Diríamos, em vez disso, que, assim como existe o ouro de tolo (pirita), poderia haver uma “água de tolo”; uma substância que, embora tenha as propriedades pelas quais originalmente identificamos a água, não seria de fato água.
E isso, eu acho, se aplica não apenas ao mundo real, mas mesmo quando falamos sobre situações contrafactuais. Se houvesse uma substância que fosse “água de tolo”, ela seria então “água de tolo” e não água. Por outro lado, se essa substância puder assumir outra forma — como a poliquímica (*polywater*) supostamente descoberta na União Soviética, com marcas de identificação muito diferentes daquilo que agora chamamos de água — ela ainda seria uma forma de água porque é a mesma substância, mesmo que não tenha as aparências pelas quais originalmente identificamos a água.
Vamos considerar a afirmação “A luz é um fluxo de fótons” ou “O calor é o movimento das moléculas”. Ao me referir à luz, naturalmente, quero dizer algo de que temos um pouco nesta sala. Quando me refiro ao calor, não me refiro a uma sensação interna que alguém possa ter, mas a um fenômeno externo que percebemos através do sentido do tato; ele produz uma sensação característica que chamamos de sensação de calor.
O calor é o movimento das moléculas. Também descobrimos que o aumento do calor corresponde ao aumento do movimento das moléculas ou, estritamente falando, ao aumento da energia cinética média das moléculas. Assim, a temperatura é identificada com a energia cinética molecular média. No entanto, não falarei sobre temperatura porque há a questão de como a escala real deve ser definida. Pode simplesmente ser definida em termos da energia cinética molecular média. Mas o que representa uma descoberta fenomenológica interessante é que, quando está mais quente, as moléculas estão se movendo mais rápido.
Também descobrimos sobre a luz que a luz é um fluxo de fótons; alternativamente, é uma forma de radiação eletromagnética. Originalmente identificamos a luz pelas impressões visuais internas características que ela pode produzir em nós, que nos permitem enxergar. O calor, por outro lado, identificamos originalmente pelo efeito característico em um aspecto de nossas terminações nervosas ou nosso sentido do tato.
Imagine uma situação em que os seres humanos fossem cegos ou seus olhos não funcionassem. Eles não seriam afetados pela luz. Isso teria sido uma situação em que a luz não existia? Parece-me que não seria. Teria sido uma situação em que nossos olhos não eram sensíveis à luz. Algumas criaturas podem ter olhos não sensíveis à luz. Entre tais criaturas estão, infelizmente, algumas pessoas, claro; elas são chamadas de “cegas”.
Mesmo que todas as pessoas tivessem horríveis crescimentos vestigiais e simplesmente não pudessem ver nada, a luz poderia estar presente; mas não seria capaz de afetar os olhos das pessoas da maneira adequada. Assim, parece-me que tal situação seria uma situação em que havia luz, mas as pessoas não conseguiam vê-la.
Portanto, embora possamos identificar a luz pelas impressões visuais características que ela produz em nós, isso parece ser um bom exemplo de fixação de referência. Fixamos o que é a luz pelo fato de que ela é qualquer coisa, no mundo, que afeta nossos olhos de uma certa maneira.
Mas agora, falando sobre situações contrafactuais em que, digamos, as pessoas fossem cegas, não diríamos que, uma vez que, nessas situações, nada pudesse afetar seus olhos, a luz não existiria; em vez disso, diríamos que seria uma situação em que a luz — a coisa que identificamos como aquilo que, de fato, nos permite ver — existia, mas não conseguia nos ajudar a ver devido a algum defeito em nós.
Talvez possamos imaginar que, por algum milagre, ondas sonoras de alguma forma permitissem que alguma criatura enxergasse. Quero dizer, elas lhe dariam impressões visuais como as que temos, talvez exatamente o mesmo senso de cores. Também podemos imaginar a mesma criatura completamente insensível à luz (fótons). Quem sabe que sutis e impensáveis possibilidades podem existir?
Diríamos que, em tal mundo possível, era o som que era luz, que esses movimentos ondulatórios no ar eram luz? Parece-me que, dado nosso conceito de luz, deveríamos descrever a situação de forma diferente. Seria uma situação em que certas criaturas, talvez até aquelas que eram chamadas de “pessoas” e habitavam este planeta, eram sensíveis não à luz, mas a ondas sonoras, sensíveis a elas exatamente da mesma forma que somos sensíveis à luz.
Se isso for assim, uma vez que descobrimos o que é a luz, quando falamos sobre outros mundos possíveis estamos falando sobre este fenômeno no mundo, e não usando “luz” como uma frase sinônima de “o que quer que nos dê a impressão visual — o que quer que nos ajude a ver”; pois pode ter havido luz e ela não nos ajudado a ver; e ainda outra coisa pode ter nos ajudado a ver. A forma como identificamos a luz fixou uma referência.
Da mesma forma ocorre com outras expressões semelhantes, como “calor”. Aqui, o calor é algo que identificamos (e fixamos a referência do seu nome) pelo fato de provocar uma certa sensação, que chamamos de “sensação de calor”. Não temos um nome especial para essa sensação além de chamá-la de sensação de calor. É interessante que a linguagem seja assim. Você poderia supor, a partir do que estou dizendo, que deveria ser o contrário. De qualquer forma, identificamos o calor e conseguimos senti-lo pelo fato de ele produzir em nós a sensação de calor. Pode ser tão importante para o conceito que sua referência seja fixada dessa maneira que, se outra pessoa detectasse o calor por algum tipo de instrumento, mas não conseguisse senti-lo, talvez quiséssemos dizer, se quiséssemos, que o conceito de calor não é o mesmo, embora o referente seja o mesmo.
No entanto, o termo “calor” não significa “aquilo que dá às pessoas essas sensações”. Primeiro, as pessoas poderiam não ter sido sensíveis ao calor e, ainda assim, o calor ter existido no mundo externo. Em segundo lugar, suponhamos que, de alguma forma, os raios de luz, por causa de alguma diferença nas terminações nervosas, dessem a elas essas sensações. Então não seria o calor, mas a luz que daria às pessoas a sensação que chamamos de sensação de calor.
Podemos então imaginar um mundo possível em que o calor não fosse movimento molecular? Podemos imaginar, claro, termos descoberto que não era. Me parece que qualquer caso que alguém pense, que ele ache a princípio ser um caso em que o calor — ao contrário do que é realmente o caso — teria sido algo diferente do movimento molecular, seria, na verdade, um caso em que algumas criaturas com terminações nervosas diferentes das nossas habitassem este planeta (talvez até nós mesmos, se for um fato contingente sobre nós termos essa estrutura neural particular), e em que essas criaturas fossem sensíveis a esse algo diferente, digamos a luz, de tal maneira que sentissem a mesma coisa que sentimos quando sentimos calor. Mas isso não é uma situação em que, digamos, a luz teria sido calor, ou mesmo em que um feixe de fótons teria sido calor, mas uma situação em que um feixe de fótons teria produzido as sensações características que chamamos de “sensações de calor”.
O mesmo vale para muitas outras identificações semelhantes, por exemplo, que o relâmpago é eletricidade. Relâmpagos são descargas elétricas. Podemos imaginar, claro, eu suponho, outras formas pelas quais o céu poderia ser iluminado à noite com o mesmo tipo de clarão, sem que nenhuma descarga elétrica estivesse presente. Aqui também, estou inclinado a dizer que, quando imaginamos isso, imaginamos algo com todas as aparências visuais de um relâmpago, mas que não é, de fato, um relâmpago. Alguém poderia nos dizer: isso parecia ser um relâmpago, mas não era. Suponho que isso até poderia acontecer hoje. Alguém poderia, com um tipo engenhoso de aparelho, produzir algum fenômeno no céu que enganasse as pessoas, fazendo-as pensar que havia um relâmpago, mesmo que, de fato, nenhum relâmpago estivesse presente. E você não diria que esse fenômeno, porque se parece com relâmpago, fosse de fato relâmpago. Era um fenômeno diferente do relâmpago, que é o fenômeno de uma descarga elétrica; e isso não é relâmpago, mas apenas algo que nos engana, fazendo-nos pensar que há relâmpago.
O que ocorre caracteristicamente nesses casos de, digamos, “calor é movimento molecular”? Há um certo referente que fixamos, para o mundo real e para todos os mundos possíveis, por meio de uma propriedade contingente dele, ou seja, a propriedade de ele ser capaz de produzir tais e tais sensações em nós. Digamos que seja uma propriedade contingente do calor produzir tais sensações nas pessoas. Afinal, é contingente que tenha havido pessoas neste planeta. Assim, não se sabe a priori qual fenômeno físico, descrito em outros termos — em termos básicos da teoria física — é o fenômeno que produz essas sensações. Não sabemos isso, e descobrimos eventualmente que esse fenômeno é, de fato, o movimento molecular. Quando descobrimos isso, descobrimos uma identificação que nos dá uma propriedade essencial desse fenômeno. Descobrimos um fenômeno que, em todos os mundos possíveis, será movimento molecular — que não poderia ter deixado de ser movimento molecular, porque é isso que o fenômeno é. Por outro lado, a propriedade pela qual o identificamos originalmente, a de produzir tais sensações em nós, não é uma propriedade necessária, mas uma contingente. Esse mesmo fenômeno poderia ter existido, mas, devido a diferenças em nossas estruturas neurais e assim por diante, não ter sido sentido como calor. Na verdade, quando digo nossas estruturas neurais, como as dos seres humanos, estou realmente me precavendo quanto a um ponto que levantei antes; porque, é claro, pode fazer parte da própria natureza dos seres humanos terem uma estrutura neural sensível ao calor. Portanto, isso também poderia acabar sendo necessário, se investigação suficiente mostrasse isso. Estou apenas ignorando isso para simplificar a discussão. De qualquer forma, não é necessário, suponho, que este planeta devesse ter sido habitado por criaturas sensíveis ao calor dessa maneira.
Vou concluir com algumas observações sobre a aplicação das considerações anteriores ao debate sobre a tese da identidade mente-corpo. Antes de fazê-lo, contudo, desejo recapitular as ideias que desenvolvi e talvez acrescentar um ou dois pontos. Primeiro, meu argumento conclui implicitamente que certos termos gerais, aqueles para espécies naturais, têm uma afinidade maior com nomes próprios do que geralmente se percebe. Essa conclusão vale certamente para diversos nomes de espécies, quer sejam substantivos contáveis, como “gato”, “tigre”, “pedaço de ouro”, ou termos de massa como “ouro”, “água”, “pirita de ferro”. Também se aplica a certos termos para fenômenos naturais, como “calor”, “luz”, “som”, “relâmpago” e, presumivelmente, adequadamente elaborados, aos adjetivos correspondentes — “quente”, “alto”, “vermelho”.
Mill, como eu relembrei, sustentava que, embora alguns “nomes singulares” — as descrições definidas — tivessem tanto denotação quanto conotação, outros, os verdadeiros nomes próprios, tinham denotação, mas não conotação. Mill também afirmava que os “nomes gerais”, ou termos gerais, tinham conotação. Termos como “vaca” ou “humano” são definidos pela conjunção de certas propriedades que determinam sua extensão — um ser humano, por exemplo, é um animal racional com certas características físicas. A antiga tradição de definição por gênero e diferença está alinhada com essa concepção. Se Kant de fato supôs que “ouro” pudesse ser definido como “metal amarelo”, é bem possível que tenha sido essa tradição que o levou a tal definição. (“Metal” seria o gênero, “amarelo” a diferença. A diferença dificilmente incluiria “ser ouro” sem cair em circularidade.)
A tradição lógica moderna, representada por Frege e Russell, contestou Mill na questão dos nomes singulares, mas o endossou na questão dos nomes gerais. Assim, todos os termos, tanto singulares quanto gerais, teriam uma “conotação” ou sentido fregeano. Teóricos mais recentes seguiram Frege e Russell, modificando suas visões apenas ao substituir a noção de sentido como dada por uma conjunção específica de propriedades pela de um “conjunto” de propriedades, das quais apenas algumas precisam se aplicar. A visão atual, invertendo diretamente Frege e Russell, endossa (mais ou menos) a visão de Mill sobre os termos singulares, mas contesta sua visão sobre os termos gerais.
Em segundo lugar, a visão atual afirma, no caso de termos de espécies assim como no de nomes próprios, que se deve ter em mente o contraste entre as propriedades a priori mas talvez contingentes associadas a um termo (dadas pela forma como sua referência foi fixada) e as propriedades analíticas (e, portanto, necessárias) que um termo pode carregar, dadas por seu significado. Para espécies, assim como para nomes próprios, a forma como a referência de um termo é fixada não deve ser considerada um sinônimo do termo. No caso de nomes próprios, a referência pode ser fixada de várias formas. Em um batismo inicial, ela é tipicamente fixada por uma ostensão ou uma descrição. Caso contrário, a referência costuma ser determinada por uma cadeia, passando o nome de elo em elo. As mesmas observações valem para um termo geral como “ouro”. Se imaginarmos um batismo hipotético (admitidamente algo artificial) da substância, devemos imaginá-la sendo escolhida por uma espécie de “definição” como: “Ouro é a substância instanciada pelos itens ali, ou pelo menos pela maioria deles”. Vários aspectos desse batismo merecem destaque. Primeiro, a identidade na “definição” não expressa uma verdade (completamente) necessária: embora cada um desses itens seja, de fato, essencialmente (necessariamente) ouro, o ouro poderia ter existido mesmo que os itens não existissem. A definição, no entanto, expressa uma verdade a priori, no mesmo sentido (e com as mesmas qualificações aplicadas) de “1 metro = o comprimento de S”: ela fixa uma referência.
Acredito que, em geral, termos para espécies naturais (por exemplo, tipos animais, vegetais e químicos) fixam suas referências dessa forma; a substância é definida como o tipo instanciado por (quase todos) de uma amostra dada. A qualificação “quase todos” permite que algum ouro de tolo (pirita) esteja presente na amostra. Se a amostra original tiver um pequeno número de itens desviantes, eles serão rejeitados como não sendo realmente ouro. Se, por outro lado, a suposição de que há uma substância ou tipo uniforme na amostra inicial se revelar mais radicalmente errada, as reações podem variar: às vezes podemos declarar que há dois tipos de ouro; outras vezes podemos abandonar o termo “ouro”. (Essas possibilidades não são supostas ser exaustivas.) E o suposto novo tipo pode se revelar ilusório por outras razões. Por exemplo, suponha que alguns itens (chamemos o conjunto de J) sejam descobertos e acredite-se que pertencem a um novo tipo K. Suponha que mais tarde se descubra que os itens em J são de fato de um único tipo; no entanto, eles pertencem a um tipo já conhecido, L. Um erro de observação levou à falsa crença inicial de que os itens em J possuíam alguma característica C que os excluía de L. Nesse caso, certamente diríamos que o tipo K não existe, apesar de ele ter sido definido por referência a uma amostra inicial uniforme. (Observe que, se L não tivesse sido previamente identificado, poderíamos muito bem ter dito que o tipo K existia, mas que estávamos enganados ao supor que estava associado à característica C!) Na medida em que a noção de “mesmo tipo” é vaga, o é também a noção original de ouro. Normalmente, essa vagueza não importa na prática.
No caso de um fenômeno natural perceptível aos sentidos, a forma como a referência é escolhida é simples: “Calor = aquilo que é sentido pela sensação S”. Mais uma vez, a identidade fixa uma referência: portanto, é a priori, mas não necessária, já que o calor poderia ter existido mesmo que nós não existíssemos. “Calor”, como “ouro”, é um designador rígido, cuja referência é fixada por sua “definição”. Outros fenômenos naturais, como a eletricidade, são originalmente identificados como as causas de certos efeitos experimentais concretos. Não tento dar aqui caracterizações exaustivas, apenas exemplos.
Em terceiro lugar, no caso de espécies naturais, certas propriedades, acreditadas como pelo menos aproximadamente características do tipo e acreditadas como aplicáveis à amostra original, são usadas para colocar novos itens, fora da amostra original, no tipo. (“Propriedades” é usado aqui num sentido amplo, e pode incluir tipos maiores: por exemplo, animalidade e felinidade, no caso de tigres.) Essas propriedades não precisam necessariamente se aplicar a priori ao tipo; investigações empíricas posteriores podem estabelecer que algumas das propriedades não pertenciam à amostra original ou que eram peculiaridades dessa amostra, sem se generalizar para o tipo como um todo. (Assim, a cor amarela do ouro pode ser uma ilusão óptica; ou, de forma mais plausível, embora o ouro originalmente observado fosse de fato amarelo, pode-se descobrir que algum ouro é branco.) Por outro lado, um item pode possuir todas as características originalmente usadas e não pertencer ao tipo. Assim, um animal pode parecer exatamente como um tigre e não ser um tigre, como mencionado acima; elementos distintos na mesma coluna da tabela periódica podem se assemelhar bastante. Essas falhas são exceções; mas, como na tabela periódica, elas ocorrem. (Às vezes, a falha da amostra inicial em ter as características associadas a ela pode nos levar a repudiar a espécie, como no caso I-K-L acima. Mas esse fenômeno não é típico, muito menos universal; veja os comentários sobre a coloração do ouro ou se gatos são animais.) A priori, tudo o que podemos dizer é que é uma questão empírica se as características originalmente associadas ao tipo se aplicam universalmente a seus membros — ou mesmo se elas se aplicam de fato — e se são suficientes, de fato, para definir a pertença ao tipo. (A suficiência conjunta é extremamente improvável de ser necessária, mas pode ser verdadeira. Na prática, qualquer animal que pareça exatamente um tigre é um tigre — até onde sei — embora seja (metafisicamente) possível que houvesse animais que se parecessem com tigres mas não fossem tigres. A aplicabilidade universal, por outro lado, pode muito bem ser necessária, se verdadeira. “Gatos são animais” revelou-se uma verdade necessária. De fato, de muitas dessas afirmações, especialmente aquelas que subsumem uma espécie sob outra, sabemos a priori que, se forem verdadeiras, são necessariamente verdadeiras.)
Quarto, a investigação científica geralmente descobre características do ouro que são muito melhores do que o conjunto original. Por exemplo, descobre-se que um objeto material é (ouro puro) se, e somente se, o único elemento contido nele é aquele com número atômico 79. Aqui, o “se, e somente se” pode ser considerado estrito (necessário). Em geral, a ciência tenta, investigando traços estruturais básicos, encontrar a natureza e, assim, a essência (no sentido filosófico) do tipo. O caso dos fenômenos naturais é semelhante; tais identificações teóricas como “calor é movimento molecular” são necessárias, embora não a priori. O tipo de identidade de propriedades usado na ciência parece estar associado à necessidade, não à a prioricidade ou à analiticidade: para todos os corpos x e y, x é mais quente que y se, e somente se, x tem maior energia cinética molecular média que y. Aqui, a coextensão dos predicados é necessária, mas não a priori. A noção filosófica de atributo, por outro lado, parece exigir coextensão a priori (e analítica), além de coextensão necessária.
Observe que, na visão atual, descobertas científicas sobre a essência das espécies não constituem uma “mudança de significado”; a possibilidade de tais descobertas fazia parte do empreendimento original. Nem precisamos assumir que a negação do biólogo de que baleias sejam peixes mostre que seu “conceito de peixez” seja diferente do do leigo; ele simplesmente corrige o leigo, descobrindo que “baleias são mamíferos, não peixes” é uma verdade necessária. Nem “baleias são mamíferos” nem “baleias são peixes” deveria ser considerado a priori ou analítico de qualquer forma.
Quinto, e independentemente das investigações científicas mencionadas, a “amostra original” é ampliada pela descoberta de novos itens. (No caso do ouro, os homens aplicaram um esforço tremendo nessa tarefa. Aqueles que duvidam da curiosidade científica natural do homem deveriam considerar esse caso. Apenas fundamentalistas anti-científicos como Bryan lançam dúvidas sobre esse esforço.) Mais importante, o nome da espécie pode ser transmitido de elo a elo, exatamente como no caso dos nomes próprios, de modo que muitos que viram pouco ou nenhum ouro ainda podem usar o termo. Sua referência é determinada por uma cadeia causal (histórica), não pelo uso de quaisquer itens. Farei ainda menos esforço aqui para detalhar uma teoria exata do que no caso dos nomes próprios.
Normalmente, quando um nome próprio é transmitido de elo a elo, a forma como a referência do nome é fixada tem pouca importância para nós. Não importa que diferentes falantes possam fixar a referência do nome de maneiras diferentes, desde que eles o atribuam ao mesmo referente. A situação provavelmente não é muito diferente para nomes de espécies, embora a tentação de pensar que o metalurgista tem um conceito diferente de ouro do que o homem que nunca viu nenhum possa ser um pouco maior. O fato interessante é que a forma como a referência é fixada parece imensamente importante para nós no caso de fenômenos sensoriais: um homem cego que usa o termo “luz”, mesmo que o use como um designador rígido para o mesmo fenômeno que nós, nos parece ter perdido muito — talvez o suficiente para declararmos que ele tem um conceito diferente. (“Conceito” aqui é usado de forma não técnica!) O fato de identificarmos a luz de uma determinada forma nos parece crucial, mesmo que não seja necessário; a conexão íntima pode criar uma ilusão de necessidade. Acredito que essa observação, juntamente com as considerações sobre a identidade de propriedades acima, pode ser essencial para a compreensão das disputas tradicionais sobre qualidades primárias e secundárias.
Vamos retornar à questão da identificação teórica. As identidades teóricas, segundo a concepção que defendo, são geralmente identidades que envolvem dois designadores rígidos e, portanto, são exemplos de verdades necessárias a posteriori. Agora, apesar dos argumentos que apresentei antes a favor da distinção entre verdade necessária e verdade a priori, a noção de uma verdade necessária a posteriori ainda pode ser um pouco desconcertante. Alguém pode muito bem ser inclinado a argumentar da seguinte forma:
“Você admitiu que o calor poderia ter se revelado não ser movimento molecular, e que o ouro poderia ter se revelado não ser o elemento com número atômico 79. Nesse caso, você também reconheceu que Elizabeth II poderia ter se revelado não ser filha de George VI, ou até mesmo não ter se originado do espermatozoide e óvulo que pensávamos, e que esta mesa poderia ter se revelado ser feita de gelo feito de água do Tâmisa. Pelo que entendo, Héspero poderia ter se revelado não ser Fósforo. O que então você quer dizer quando afirma que tais eventualidades são impossíveis? Se Héspero poderia ter se revelado não ser Fósforo, então Héspero poderia não ter sido Fósforo. E o mesmo vale para os outros casos: se o mundo poderia ter se revelado de outra forma, ele poderia ter sido de outra forma. Negar esse fato é negar o princípio modal autoevidente de que o que é implicado por uma possibilidade deve ser ele próprio possível.
Tampouco você pode evitar a dificuldade declarando que o “poderia ter” de ‘poderia ter se revelado de outra forma’ é meramente epistêmico, da mesma forma que “O Último Teorema de Fermat pode se revelar verdadeiro ou pode se revelar falso” expressa apenas nossa ignorância atual, e “A aritmética poderia ter se revelado completa” sinaliza nossa ignorância anterior. Nesses casos matemáticos, talvez fôssemos ignorantes, mas era, de fato, matematicamente impossível que a resposta se revelasse diferente do que foi. Não é assim nos seus casos favoritos de essência e de identidade entre dois designadores rígidos: é realmente logicamente possível que o ouro tivesse se revelado ser um composto, e esta mesa poderia realmente ter se revelado não ser feita de madeira, muito menos de um bloco específico de madeira. O contraste com o caso matemático não poderia ser maior e não seria amenizado mesmo que, como você sugere, possam existir verdades matemáticas que é impossível saber a priori.”
Talvez qualquer um que tenha captado o espírito das minhas observações anteriores já possa dar minha resposta por si mesmo, mas há um esclarecimento da minha discussão anterior que é relevante aqui. O objetor está correto quando argumenta que, se eu sustento que esta mesa não poderia ter sido feita de gelo, então devo também sustentar que ela não poderia ter se revelado ser feita de gelo; “poderia ter se revelado que P” implica que “P poderia ter sido o caso”. O que, então, significa a intuição de que a mesa poderia ter se revelado ter sido feita de gelo ou de qualquer outra coisa, que ela poderia até ter se revelado não ser feita de moléculas? Eu penso que isso significa simplesmente que poderia ter existido uma mesa que se parecesse e tivesse o mesmo tato que esta, e que estivesse exatamente nesta posição da sala, mas que, de fato, fosse feita de gelo. Em outras palavras, eu (ou algum ser consciente) poderia ter estado em uma situação epistêmica qualitativamente idêntica à que de fato ocorre, poderia ter a mesma evidência sensorial que de fato tenho, sobre uma mesa que era feita de gelo.
A situação, portanto, é semelhante àquela que inspirou os teóricos da teoria dos contrapartes; quando falo da possibilidade de a mesa ter se revelado ser feita de várias coisas, estou falando de forma imprecisa. Esta mesa em si não poderia ter tido uma origem diferente da que de fato teve, mas, em uma situação qualitativamente idêntica a esta no que diz respeito a toda a evidência que eu tinha de antemão, a sala poderia ter contido uma mesa feita de gelo no lugar desta. Algo como a teoria dos contrapartes é, portanto, aplicável à situação, mas se aplica apenas porque não estamos interessados no que poderia ter sido verdadeiro sobre esta mesa particular, mas no que poderia ou não ser verdadeiro sobre uma mesa, dadas certas evidências. É precisamente porque não é verdade que esta mesa poderia ter sido feita de gelo do Tâmisa que devemos recorrer aqui a descrições qualitativas e contrapartes. Aplicar essas noções a modalidades genuínas *de re* (sobre o próprio objeto) é, sob a perspectiva atual, um desvio.
A resposta geral ao objetor pode ser formulada, então, da seguinte forma: qualquer verdade necessária, seja a priori ou a posteriori, não poderia ter se revelado de outra forma. No caso de algumas verdades necessárias a posteriori, entretanto, podemos dizer que, sob situações evidenciais apropriadas e qualitativamente idênticas, uma afirmação qualitativa correspondente apropriada poderia ter sido falsa. A afirmação imprecisa de que o ouro poderia ter se revelado ser um composto deve ser substituída (aproximadamente) pela afirmação de que é logicamente possível que pudesse ter existido um composto com todas as propriedades originalmente conhecidas do ouro. A afirmação imprecisa de que Héspero poderia ter se revelado não ser Fósforo deve ser substituída pela contingência real mencionada anteriormente nestas palestras: dois corpos distintos poderiam ter ocupado, de manhã e à noite respectivamente, as mesmas posições que de fato foram ocupadas por Héspero-Fósforo-Vênus.
A razão pela qual o exemplo do Último Teorema de Fermat causa uma impressão diferente é que, neste caso, não se sugere nenhum análogo, exceto pela afirmação extremamente geral de que, na ausência de prova ou refutação, é possível que uma conjectura matemática seja verdadeira ou falsa.
Eu não forneci um paradigma geral para a formulação adequada da correspondente afirmação qualitativa contingente. Como estamos preocupados com como as coisas poderiam ter ocorrido de outra forma, nosso paradigma geral é redescrever tanto a evidência prévia quanto a afrmação de forma qualitativa e alegar que elas estão relacionadas apenas de maneira contingente. No caso de identidades usando dois designadores rígidos, como no exemplo de Héspero e Fósforo acima, há um paradigma mais simples que muitas vezes pode ser usado para produzir aproximadamente o mesmo efeito.
Seja R₁ e R₂ os dois designadores rígidos que flanqueiam o sinal de identidade. Então “R₁ = R₂” é necessário se for verdadeiro. As referências de R₁ e R₂, respectivamente, podem muito bem ser fixadas por designadores não rígidos D₁ e D₂ — nos casos de Héspero e Fósforo, esses têm a forma “o corpo celeste em tal e tal posição no céu à noite (ou de manhã)”. Assim, embora “R₁ = R₂” seja necessário, “D₁ = D₂” pode ser contingente, e é isso que frequentemente leva à visão errônea de que “R₁ = R₂” poderia ter sido de outra forma.
Finalmente, passo a uma discussão — infelizmente muito breve — da aplicação das considerações anteriores à tese da identidade. Os teóricos da identidade têm se ocupado de vários tipos distintos de identificações: de uma pessoa com seu corpo; de uma sensação particular (ou evento ou estado de ter a sensação) com um estado cerebral específico (a dor de Jones às 6h foi a estimulação das fibras C naquele momento); e de tipos de estados mentais com os tipos correspondentes de estados físicos (dor é a estimulação de fibras C). Cada uma dessas identificações — e outros tipos discutidos na literatura — apresenta problemas analíticos, corretamente apontados pelos críticos cartesianos, que não podem ser evitados com um simples apelo à suposta confusão entre sinonímia e identidade.
Devo mencionar que, é claro, não há nenhum obstáculo óbvio — ou pelo menos (digo com cautela) nenhum que deva ocorrer a qualquer pensador inteligente em uma primeira reflexão antes de dormir — para defender algumas teses de identidade enquanto se duvida ou se nega outras. Por exemplo, alguns filósofos aceitaram a identidade de sensações particulares com estados cerebrais particulares enquanto negaram a possibilidade de identidades entre tipos mentais e tipos físicos. Eu me ocuparei principalmente com as identidades tipo-tipo, e os filósofos em questão estarão, assim, imunes a grande parte da discussão; mas mencionarei brevemente os outros tipos de identidades.
Descartes, e outros que o seguiram, argumentaram que uma pessoa ou mente é distinta de seu corpo, uma vez que a mente poderia existir sem o corpo. Ele poderia igualmente bem ter argumentado a mesma conclusão a partir da premissa de que o corpo poderia ter existido sem a mente. Agora, a única resposta que considero claramente inadmissível é aquela que aceita alegremente a premissa cartesiana enquanto nega a conclusão cartesiana. Seja “Descartes” um nome, ou designador rígido, de uma determinada pessoa, e “B” um designador rígido de seu corpo. Então, se Descartes fosse de fato idêntico a B, a suposta identidade — sendo uma identidade entre dois designadores rígidos — seria necessária, e Descartes não poderia existir sem B e B não poderia existir sem Descartes.
O caso não é de forma alguma comparável ao suposto análogo: a identidade do primeiro Postmaster General (Chefe dos Correios dos EUA) com o inventor dos óculos bifocais. É verdade que essa identidade se mantém apesar do fato de que poderia ter havido um primeiro Postmaster General mesmo que os bifocais nunca tivessem sido inventados. A razão é que “o inventor dos bifocais” não é um designador rígido; um mundo no qual ninguém inventou bifocais não é, *ipso facto*, um mundo no qual Franklin não existiu. A suposta analogia, portanto, colapsa; um filósofo que deseje refutar a conclusão cartesiana deve refutar a premissa cartesiana — e essa tarefa não é trivial.
Seja “A” o nome de uma sensação de dor particular e “B” o nome do estado cerebral correspondente, ou o estado cerebral que algum teórico da identidade deseja identificar com A. Prima facie, pareceria que é pelo menos logicamente possível que B existisse (o cérebro de Jones poderia ter estado exatamente naquele estado no momento em questão) sem Jones sentir qualquer dor — e, assim, sem a presença de A. Mais uma vez, o teórico da identidade não pode admitir essa possibilidade alegremente e prosseguir a partir daí; a consistência, e o princípio da necessidade de identidades usando designadores rígidos, não permitem tal curso.
A dificuldade dificilmente pode ser evitada argumentando que, embora B não pudesse existir sem A, ser uma dor é meramente uma propriedade contingente de A — e que, portanto, a presença de B sem dor não implica a presença de B sem A. Pode haver algum caso de essência mais óbvio do que o fato de que ser uma dor é uma propriedade necessária de cada dor? O teórico da identidade que deseja adotar essa estratégia deve até argumentar que ser uma sensação é uma propriedade contingente de A, pois, *prima facie*, pareceria logicamente possível que B existisse sem qualquer sensação com a qual pudesse plausivelmente ser identificado. Considere uma dor particular, ou outra sensação, que você já teve. Você acha de alguma forma plausível que essa mesma sensação poderia ter existido sem ser uma sensação — da mesma forma que certo inventor (Franklin) poderia ter existido sem ser inventor?
Menciono essa estratégia porque me parece que ela é adotada por um grande número de teóricos da identidade. Esses teóricos, acreditando como acreditam que a suposta identidade de um estado cerebral com o estado mental correspondente deve ser analisada no paradigma da identidade contingente de Benjamin Franklin com o inventor dos bifocais, percebem que, assim como a atividade contingente de Franklin o tornou o inventor dos bifocais, alguma propriedade contingente do estado cerebral deve torná-lo uma dor.
Geralmente, eles desejam que essa propriedade seja expressável em linguagem física ou pelo menos “neutra quanto ao tópico”, de modo que o materialista não possa ser acusado de postular propriedades não físicas irredutíveis. Uma visão típica é que ser uma dor, como propriedade de um estado físico, deve ser analisado em termos do “papel causal” do estado — ou seja, em termos dos estímulos característicos (por exemplo, picadas de alfinete) que o causam e do comportamento característico que ele causa. Não entrarei nos detalhes de tais análises, embora normalmente as considere falhas em fundamentos específicos, além das considerações modais gerais que argumento aqui.
Tudo o que preciso observar aqui é que o “papel causal” do estado físico é considerado pelos teóricos em questão como uma propriedade contingente do estado e, assim, supõe-se que seja uma propriedade contingente do estado que ele seja um estado mental — quanto mais algo tão específico quanto uma dor. Para repetir, essa noção me parece evidentemente absurda. Ela equivale à visão de que a própria dor que sinto agora poderia ter existido sem ser um estado mental de forma alguma.
Eu não discuti o problema inverso, que está mais próximo da consideração cartesiana original, ou seja, assim como parece que o estado cerebral poderia ter existido sem nenhuma dor, também parece que a dor poderia ter existido sem o estado cerebral correspondente. Note que ser um estado cerebral é evidentemente uma propriedade essencial de B (o estado cerebral). De fato, é ainda mais verdadeiro: não apenas ser um estado cerebral, mas até mesmo ser um estado cerebral de um tipo específico é uma propriedade essencial de B. A configuração das células cerebrais cuja presença em um dado momento constitui a presença de B naquele momento é essencial para B, e na sua ausência B não teria existido. Assim, alguém que queira afirmar que o estado cerebral e a dor são idênticos deve argumentar que a dor A não poderia ter existido sem um tipo específico de configuração de moléculas. Se A = B, então a identidade de A com B é necessária, e qualquer propriedade essencial de um deve ser uma propriedade essencial do outro. Alguém que queira manter uma tese de identidade não pode simplesmente aceitar as intuições cartesianas de que A pode existir sem B, que B pode existir sem A, que a presença correlata de qualquer coisa com propriedades mentais é meramente contingente para B, e que a presença correlata de quaisquer propriedades físicas específicas é meramente contingente para A. Ele deve explicar essas intuições, mostrando como elas são ilusórias. Essa tarefa pode não ser impossível; vimos acima como algumas coisas que parecem ser contingentes acabam, após um exame mais atento, sendo necessárias. No entanto, a tarefa, obviamente, não é brincadeira de criança, e veremos abaixo como é difícil.
O último tipo de identidade, o que eu disse que receberia mais atenção, é o tipo-tipo de identidade exemplificado pela identificação de dor com a estimulação das fibras C. Essas identificações devem ser análogas a tais identificações científicas do tipo-tipo, como a identidade do calor com o movimento molecular, da água com hidróxido de hidrogênio e outras semelhantes. Vamos considerar, como exemplo, a analogia suposta entre a identificação materialista e a de calor com o movimento molecular; ambas as identificações identificam dois tipos de fenômenos. A visão usual sustenta que a identificação de calor com o movimento molecular e de dor com a estimulação das fibras C são ambas contingentes. Vimos acima que, uma vez que ‘calor’ e ‘movimento molecular’ são ambos designadores rígidos, a identificação dos fenômenos que eles nomeiam é necessária. E quanto a ‘dor’ e ‘estimulação das fibras C’? Deveria estar claro a partir da discussão anterior que ‘dor’ é um designador rígido do tipo ou fenômeno que designa: se algo é dor, é essencialmente assim, e parece absurdo supor que dor poderia ter sido algum fenômeno diferente do que é. O mesmo vale para o termo ‘estimulação das fibras C’, desde que ‘fibras C’ seja um designador rígido, como eu suporei aqui. (A suposição é um pouco arriscada, pois eu praticamente não sei nada sobre as fibras C, exceto que a estimulação delas é dita estar correlacionada com dor. O ponto não é importante; se ‘fibras C’ não for um designador rígido, basta substituí-lo por um que seja, ou supor que é usado como designador rígido no contexto atual.) Assim, a identidade da dor com a estimulação das fibras C, se verdadeira, deve ser necessária.
Até agora, a analogia entre a identificação de calor com movimento molecular e dor com estimulação das fibras C não falhou; ela apenas se mostrou o oposto do que normalmente se pensa – ambas, se verdadeiras, devem ser necessárias. Isso significa que o teórico da identidade está comprometido com a visão de que não poderia haver uma estimulação das fibras C que não fosse uma dor, nem uma dor que não fosse uma estimulação das fibras C. Essas consequências são certamente surpreendentes e contra-intuitivas, mas não devemos descartar o teórico da identidade tão rapidamente. Ele talvez consiga mostrar que a aparente possibilidade de a dor não ter acabado sendo estimulação das fibras C, ou de haver uma instância de um dos fenômenos que não seja uma instância do outro, é uma ilusão do mesmo tipo da ilusão de que a água poderia não ter sido hidróxido de hidrogênio, ou de que o calor poderia não ter sido movimento molecular? Se for isso, ele terá refutado o cartesiano, não, como na análise convencional, aceitando sua premissa enquanto expõe a falácia de seu argumento, mas sim pelo oposto – enquanto o argumento cartesiano, dada a premissa da contingência da identificação, concede que leva à sua conclusão, a premissa será exposta como superficialmente plausível, mas falsa.
Agora, eu não acho provável que o teórico da identidade tenha sucesso em tal empreitada. Quero argumentar que, pelo menos, o caso não pode ser interpretado como análogo àquele da identificação científica do tipo usual, exemplificado pela identidade do calor e do movimento molecular. Qual foi a estratégia usada acima para lidar com a aparente contingência de certos casos do necessário a posteriori? A estratégia foi argumentar que, embora a própria afirmação seja necessária, alguém poderia, qualitativamente falando, estar na mesma situação epistêmica que o original, e em tal situação, uma afirmação qualitativamente análoga poderia ser falsa. No caso das identidades entre dois designadores rígidos, a estratégia pode ser aproximada por uma mais simples: considere como as referências dos designadores são determinadas; se essas coincidirem apenas contingentemente, é esse fato que dá à afirmação original sua ilusão de contingência. No caso do calor e do movimento molecular, a forma como esses dois paradigmas se desdobram é simples. Quando alguém diz, de forma imprecisa, que o calor poderia não ter acabado sendo movimento molecular, o que é verdade no que ele diz é que alguém poderia ter sentido um fenômeno da mesma maneira que sentimos calor, ou seja, sentindo-o por meio de sua produção da sensação que chamamos de ‘sensação de calor’ (chame-a de ‘S’), mesmo que esse fenômeno não tenha sido movimento molecular. Ele quer dizer, adicionalmente, que o planeta poderia ter sido habitado por criaturas que não sentiam S quando estavam na presença de movimento molecular, embora talvez o sentissem na presença de algo mais. Tais criaturas estariam, em algum sentido qualitativo, na mesma situação epistêmica que nós, elas poderiam usar um designador rígido para o fenômeno que causa a sensação S nelas (o designador rígido poderia até ser ‘calor’), mas não seria o movimento molecular (e, portanto, não seria calor!) o que estaria causando a sensação.
Agora, pode-se dizer algo de forma análoga para explicar a sensação de que a identidade entre dor e estimulação das fibras C, se for uma descoberta científica, poderia ter sido diferente? Eu não vejo como tal analogia seja possível. No caso da aparente possibilidade de que o movimento molecular pudesse ter existido na ausência de calor, o que parecia realmente possível é que o movimento molecular deveria ter existido sem ser sentido como calor, ou seja, poderia ter existido sem produzir a sensação S, a sensação de calor. Nos seres sensientes apropriados, seria analogamente possível que uma estimulação das fibras C tivesse existido sem ser sentida como dor? Se isso for possível, então a estimulação das fibras C pode existir sem dor, já que para que ela exista sem ser sentida como dor, é necessário que ela exista sem que haja dor. Tal situação estaria em clara contradição com a suposta identidade necessária entre dor e o estado físico correspondente, e o análogo se aplica a qualquer estado físico que possa ser identificado com um estado mental correspondente. O problema é que o teórico da identidade não sustenta que o estado físico apenas produza o estado mental, ao contrário, ele deseja que os dois sejam idênticos e, assim, necessariamente coocorrentes. No caso do movimento molecular e do calor, há algo, a saber, a sensação de calor, que é um intermediário entre o fenômeno externo e o observador. No caso mental-físico, nenhum intermediário é possível, já que aqui o fenômeno físico é suposto ser idêntico ao fenômeno interno em si. Alguém pode estar na mesma situação epistêmica que estaria se houvesse calor, mesmo na ausência de calor, simplesmente sentindo a sensação de calor; e mesmo na presença de calor, ele pode ter a mesma evidência que teria na ausência de calor, simplesmente por não ter a sensação S. Nenhuma possibilidade semelhante existe no caso da dor e outros fenômenos mentais. Estar na mesma situação epistêmica que obteria se alguém tivesse uma dor é ter uma dor; estar na mesma situação epistêmica que obteria na ausência de uma dor é não ter uma dor. A aparente contingência da conexão entre o estado mental e o estado cerebral correspondente, portanto, não pode ser explicada por uma espécie de análogo qualitativo como no caso do calor.
Acabamos de analisar a situação em termos da noção de uma situação epistêmica qualitativamente idêntica. O problema é que a noção de uma situação epistêmica qualitativamente idêntica àquela em que o observador teve uma sensação S simplesmente é uma em que o observador teve essa sensação. O mesmo ponto pode ser feito em termos da noção do que determina a referência de um designador rígido. No caso da identidade do calor com o movimento molecular, a consideração importante era que, embora ‘calor’ seja um designador rígido, a referência desse designador era determinada por uma propriedade acidental do referente, a saber, a propriedade de produzir em nós a sensação S. Assim, é possível que um fenômeno tenha sido rigidamente designado da mesma forma que um fenômeno de calor, com sua referência também sendo determinada por meio da sensação S, sem que esse fenômeno seja calor e, portanto, sem que seja movimento molecular. A dor, por outro lado, não é determinada por uma de suas propriedades acidentais; ela é determinada pela propriedade de ser a dor em si mesma, pela sua qualidade fenomenológica imediata. Assim, a dor, assim como o calor, não é apenas rigidamente designada por ‘dor’, mas a referência do designador é determinada por uma propriedade essencial do referente. Portanto, não é possível dizer que, embora a dor seja necessariamente idêntica a um certo estado físico, um certo fenômeno pode ser designado da mesma maneira que designamos a dor sem estar correlacionado com aquele estado físico. Se algum fenômeno é designado exatamente da mesma forma que designamos a dor, então esse fenômeno é a dor.
Talvez o mesmo ponto possa ser feito de maneira mais vívida sem uma referência tão específica ao aparato técnico dessas palestras. Suponhamos que imaginemos Deus criando o mundo; o que Ele precisa fazer para que a identidade entre calor e movimento molecular se realize? Aqui pareceria que tudo o que Ele precisa fazer é criar o calor, ou seja, o movimento molecular em si. Se as moléculas de ar nesta Terra estiverem suficientemente agitadas, se houver um fogo queimando, então a Terra estará quente, mesmo que não haja observadores para vê-lo. Deus criou a luz (e assim criou fluxos de fótons, de acordo com a doutrina científica atual) antes de criar os observadores humanos e animais; e o mesmo, presumivelmente, vale para o calor. Como então nos parece que a identidade entre o movimento molecular e o calor é um fato científico substancial, que a mera criação do movimento molecular ainda deixa Deus com a tarefa adicional de transformar o movimento molecular em calor? Essa sensação é, de fato, ilusória, mas o que é uma tarefa substancial para a Divindade é a tarefa de fazer com que o movimento molecular seja sentido como calor. Para fazer isso, Ele deve criar alguns seres sensientes para garantir que o movimento molecular produza a sensação S neles. Só depois de fazer isso haverá seres que poderão aprender que a sentença ‘Calor é o movimento das moléculas’ expressa uma verdade a posteriori exatamente da mesma maneira que nós o fazemos.
E quanto ao caso da estimulação das fibras C? Para criar esse fenômeno, pareceria que Deus precisaria apenas criar seres com fibras C capazes do tipo apropriado de estimulação física; se os seres são conscientes ou não não é relevante aqui. Pareceria, no entanto, que para fazer com que a estimulação das fibras C corresponda à dor, ou seja, seja sentida como dor, Deus deve fazer algo além da mera criação da estimulação das fibras C; Ele deve deixar as criaturas sentirem a estimulação das fibras C como dor, e não como uma cócega, ou como calor, ou como nada, como aparentemente também teria sido dentro de Seus poderes. Se essas coisas de fato estão dentro de Seus poderes, a relação entre a dor que Deus cria e a estimulação das fibras C não pode ser identidade. Pois, se fosse, a estimulação poderia existir sem a dor; e, já que ‘dor’ e ‘estimulação das fibras C’ são rígidos, esse fato implica que a relação entre os dois fenômenos não é de identidade. Deus teve que fazer algum trabalho, além de criar o homem em si, para fazer com que certo homem fosse o inventor dos bifocais; o homem poderia bem existir sem inventar tal coisa. O mesmo não pode ser dito sobre a dor; se o fenômeno existe, nenhum trabalho adicional deveria ser necessário para transformá-lo em dor.
Em resumo, a correspondência entre um estado cerebral e um estado mental parece ter um certo elemento óbvio de contingência. Vimos que identidade não é uma relação que possa ocorrer de forma contingente entre objetos. Portanto, se a tese da identidade estivesse correta, o elemento de contingência não estaria na relação entre os estados mentais e físicos. Não pode estar, como no caso do calor e do movimento molecular, na relação entre o fenômeno (= calor = movimento molecular) e a forma como ele é sentido ou percebido (sensação S), já que no caso dos fenômenos mentais não há uma “aparência” além do próprio fenômeno mental.
Aqui, tenho enfatizado a possibilidade, ou a aparente possibilidade, de um estado físico sem o correspondente estado mental. A possibilidade inversa, o estado mental (dor) sem o estado físico (estimulação das fibras C), também apresenta problemas para os teóricos da identidade, que não podem ser resolvidos por meio da analogia com o calor e o movimento molecular.
Discuti problemas semelhantes de forma mais breve para visões que igualam o self com o corpo e eventos mentais específicos com eventos físicos específicos, sem discutir possíveis contra-argumentos com o mesmo nível de detalhe que no caso da identidade tipo-tipo. Basta dizer que suspeito que as considerações apresentadas indicam que o teórico que deseja identificar vários eventos mentais e físicos específicos terá que enfrentar problemas bastante semelhantes aos do teórico tipo-tipo; ele também será incapaz de recorrer aos análogos usuais alegados.
Que os movimentos e analogias usuais não estão disponíveis para resolver os problemas do teórico da identidade não é, é claro, uma prova de que nenhum movimento está disponível. Certamente não posso discutir todas as possibilidades aqui. Suspeito, no entanto, que as considerações atuais pesam fortemente contra as formas usuais de materialismo. O materialismo, penso, deve sustentar que uma descrição física do mundo é uma descrição completa dele, que quaisquer fatos mentais são “ontologicamente dependentes” de fatos físicos no sentido direto de seguirem deles por necessidade. Nenhum teórico da identidade me parece ter feito um argumento convincente contra a visão intuitiva de que isso não é o caso.