Um largo e sinuoso presente

O que fazemos hoje afeta o dia de amanhã de infinitas maneiras, algumas óbvias, outras inesperadas, todas significativas. Por isso, o futuro encerrado no presente se torna objeto obrigatório de estudo e vem sendo tanto investigado como valorizado pelas chamadas “usinas do futuro”, como mostra essa reportagem.

O futuro deixou de ser território exclusivo da “ficção científica e da literatura fantástica, do mero exercício de imaginação e das profecias. Mesmo que muitos de nós não tenhamos percebido, foi alçado ao status de especialidade, e das mais exigentes. Não é qualquer um que pode ser futurólogo: a descrição dessa atividade exige um olhar ousado, sem preconceitos, criativo e muitíssimo bem-informado.

Foi um olhar parecido com esse que levou o escritor francês Júlio Verne a ser chamado de “o homem que criou o futuro”. Em 1865, ele antecipou onde desceria, 104 anos mais tarde, a primeira missão tripulada para a Lua em sua volta à Terra. Verne não brincou com mitos e lendas, não inventou realidades mirabolantes. Partiu das informações que tinha à disposição –e de seu olhar ousado, sem preconceitos, criativo– para delinear um futuro possível.

A Apolo 11 caindo no oceano Pacífico não foi a única previsão acertada de Verne em seu romance Da Terra à Lua. Os tripulantes eram três, como ele descreveu, a forma e o tamanho do módulo de serviço eram similares e os estados do Texas e da Flórida realmente brigaram para ser os protagonistas (disputa que foi resolvida sabiamente pelo Congresso dos Estados Unidos em 1960, quando se decidiu que o lançamento do foguete seria feito no Cabo Canaveral, na Flórida, e o acompanhamento da missão em Houston, no Texas).

Não é por acaso que se considera Da Terra à Lua o primeiro romance com credibilidade acerca do futuro. Não que não tenha alguns erros conceituais, mas seu autor se preocupou com a exatidão científica dos fatos narrados. Verne não pretendia fazer “ficção científia “criativa” em um mundo futuro, cujas regras havia “fixado e podia modificar de acordo com seu gosto ou sua necessidade. Ele quis desenvolver uma das eventuais realidades projetadas a partir das informações e do conhecimento de sua época.

Sete regras para pensar o futuro

O futurólogo Paul Saffo, diretor de uma das mais célebres usinas do futuro da atualidade, o Institute for the Future, ensina que o modo mais eficaz de pensar o futuro é prestar atenção na maneira como as tendências ocultas no presente “apontam”, com mais ou menos força, para a direção futura. “O objetivo é identificar amplo leque de possibilidades e não um conjunto limitado de certezas ilusórias. É ‘mapear’ a incerteza. Porque, em um mundo em que nossas ações presentes in;uenciam o futuro, a incerteza é uma oportunidade.” Uma oportunidade que se desenha na forma de um cone, pois, como afima Saffo, “expande-se à medida que nos projetamos mais e mais no futuro; a próxima década encerra mais surpresas do que a próxima semana”. Uma oportunidade cujos “limites”, segundo comprovou o especialista em seus mais de 25 anos dedicados ao assunto, respondem a uma lógica nada arbitrária.

Na hora de pensar o futuro, diz Saffo, há sete regras claras:

A regra número um é que não se pode subestimar o impacto das wild cards, ou “cartas loucas”, fatos de baixa probabilidade e alto impacto que “abrem” as bordas do cone ao incluir o fator surpresa –conceito similar ao dos “cisnes negros”, a que se refere Nassim Nicholas Taleb. Assim, a guinada inesperada, um recurso muito bem explorado pela “ficção científica, torna-se previsível, afirma ele, quando se trabalha com idéias semeadas que talvez ;oresçam –ou não– apenas 15 anos mais tarde. Ignorar o imponderável pode até ser perigoso em um contexto turbulento, porque, repentino, inesperado e único, um fato desse tipo pode transformar-se em ponto de in;exão na evolução de uma tendência ou sistema.

A segunda regra consiste em entender que a mudança nunca é linear –e, portanto, difere de nossas expectativas, que o são. Lenta e progressiva no início, a mudança pode “vaguear” indecisa e em silêncio durante um tempo e, então, explodir de repente. Por isso, não se deve cometer o erro, freqüente, de supervalorizar a mudança no curto prazo e subestimá-la no longo. Saffo adverte a todos que queiram se embrenhar no terreno pantanoso da futurologia: “Evitem confundir curta distância com visão clara”.

A regra número três é resumida pelo futurólogo pela frase “O futuro já chegou; só não está ainda uniformemente distribuído”, de autoria do escritor de “ficção científica” William Ford Gibson –o primeiro a usar o termo “matrix” para se referir à internet e a descrevê-la como rede global de comunicação. Saffo escolhe essa frase para fazer um alerta: nunca ignore ou desmereça aquilo que parece fora de lugar; pode ser um sinal fraco de algo que começa a ganhar espaço.

A quarta regra é bem interessante: para aprender a enxergar para frente, é preciso saber olhar para trás. E, se o horizonte futuro com que se trabalha é de uma década, a visão retrospectiva tem de cobrir 20 anos no mínimo. “É raro que o passado recente sirva como indicador confiável do futuro”, aponta o futurólogo. Isso porque uma revelação não está em fatos, mas em padrões que modelam fatos. E os padrões só são vistos quando o intervalo de tempo é grande.

A regra número cinco de Paul Saffo vai entre aspas: “Não confundam aquilo que é desejado com o que é possível”.

A sexta regra é direta e objetiva: não hesitar em supor que podemos estar equivocados em nossas previsões.

Para finalizar, o diretor do Institute for the Future sugere que façamos o exercício de antecipar o futuro com freqüência.

Futuro em crise, longo prazo desacreditado

Estranhamente, ao mesmo tempo que prever o futuro se tornou uma profissão respeitável, aumentou bastante o foco no presente. No livro Tempos Líquidos (ed. Jorge Zahar), o filósofo e sociólogo polonês Zygmunt Bauman aponta essa descrença no longo prazo. Ele explica: “Hoje, quando a interrupção, a incoerência, a surpresa, as mudanças súbitas são condições habituais, […] o futuro se dilui e, com ele, dilui-se a expectativa de que algo ‘dure’ demasiado”.

“Não sei o que aconteceu com o futuro”, escreveu Michael Chabon, escritor norte- americano ganhador do prêmio Pulitzer, em artigo recente, concordando com Bauman. “Parece que perdemos a habilidade, ou a vontade, de imaginar algo daqui a cem anos, como se não tivéssemos fé na existência de futuro algum nessa data não tão distante.”

Talvez isso se explique pela ressaca do ano 2000. O fato é que, desde meados do século passado, ou até antes, 2000 havia se instalado como um marco do qual todo mundo falava. Era o próprio farol do porvir. Passado esse ano mágico, parece não haver uma data, um sinal no futuro imaginado ou estudado (uns poucos aventam o final do calendário maia em 2012, porém de maneira mais esotérica). É como se o longo prazo estivesse em crise.

Essa crise do longo prazo foi intuída três décadas atrás por Brian Eno, músico inglês e um dos criadores da The Long Now, uma das mais originais usinas do futuro da atualidade, quando se mudou para Nova York em 1978. Foi quando ele descobriu que “aqui e agora”, na Big Apple, significava “neste quarto e em cinco minutos”. “Grandes edifícios eram construídos e demolidos com igual fruição, personalidades e carreiras se consagravam e descarrilavam em semanas”, lembra Eno. “Parecia que ninguém tinha tempo de pensar no que poderia acontecer em dois anos, e muito menos em dez ou cem. Tudo era egoísta, irresponsável e perigoso. Eu batizei isso de ‘o pequeno agora’ e, por extensão, senti a visão oposta como uma possibilidade real.”

Daí surgiu o nome The Long Now (O Longo Agora) para a fundação que Eno e um grupo de amigos se propuseram criar em 1996 com o objetivo de “contrapor a dualidade ‘mais barato e mais rápido’ e promover um pensamento ‘melhor e mais lento’”. A esperança da The Long Now é, segundo seus fundadores, fomentar, de maneira criativa, a responsabilidade no contexto dos próximos 10 mil anos. Mais do que um jogo de palavras, foi uma rebelião contra o “não tempo” que assaltou Brian Eno em sua chegada aos Estados Unidos.

O encurtamento do futuro precederia uma expansão ilimitada?

Um dos fundadores da The Long Now, o especialista em computadores Daniel Hillis, apareceu pela primeira vez para o grande público em 1995, numa edição da revista Wired dedicada a cenários, com uma afirmação bombástica: “O encurtamento do futuro tem a ver com muito mais do que datas. Parece indicar que algo radical, fundamental está por acontecer. Basta ver os gráficos com a evolução anual da população mundial, a concentração atmosférica de dióxido de carbono, a quantidade de sites na web, o preço dos megabytes por dólar; tudo cresce absurdamente. É a singularidade”. (A singularidade é traduzida nesse contexto como a capacidade de expansão exponencial –teoricamente ilimitada.)

Então, veio Ray Kurzweil, engenheiro, inventor, empreendedor e também futurólogo, e fez da singularidade um livro –The Singularity is Near (ed. Penguin Group, ainda não lançado no Brasil), que logo será transformado em filme. Dentro de não muito tempo, segundo Kurzweil, veremos como nossa biologia se fundirá com os impressionantes avanços da genética, da nanotecnologia e da robótica –a revolucionária trilogia que vem sendo tratada pela sigla GNR. E isso levará à criação de uma espécie (humana?) com níveis irreconhecíveis de inteligência, longevidade, compreensão e memória.

Hillis resumiu isso tudo com poesia: “Será o fim de tudo como o conhecemos. O princípio de algo que talvez nunca possamos entender. Acredito que é hora de iniciar um projeto que faça com que as pessoas superem a barreira desse futuro cada vez mais curto. Quero construir um relógio mecânico no qual o ponteiro dos minutos se mexa uma vez por ano, que toque uma vez por século. Um relógio no qual o cuco cante uma vez cada mil anos”.

Em defesa do longuíssimo prazo

Com Brian Eno e outros ávidos pelo futuro, Hillis colocou em andamento o projeto do relógio do milênio e a “Biblioteca dos 10 Mil Anos”, surgida da necessidade de que os conteúdos do mundo acompanhem o contexto de longuíssimo prazo promovido pelo relógio, assim como o projeto The Long Bets (As Apostas Longas), cujo propósito é melhorar a qualidade do pensamento de longo prazo. E começou a organizar seminários com historiadores, pensadores, cientistas e artistas, como Niall Ferguson, Craig Venter, Juan Enriquez, Nassim Taleb, Rosabeth Moss Kanter, Jared Diamond, Francis Fukuyama, Chris Anderson, Jimmy Wales, Kevin Kelly, Ray Kurzweil e Clay Shirky, entre outros, para debater o futuro.

“Era preciso um contraponto à acentuada tendência de curto prazo que havíamos observado, um mecanismo ou um mito que desse alento à visão e à responsabilidade de longo prazo. O ‘Relógio do Longo Agora’ cumpre ambas as funções”, explica Stewart Brand, presidente da The Long Now, co-fundador e diretor do Global Business Network, ex-membro do Santa Fe Institute e autor de O Relógio do Longo Agora (ed. Rocco), além de Two Cybernetic Frontiers (ed. Random House), livro em que apareceu impresso pela primeira vez o termo “computador pessoal” e em que os hackers inauguraram sua presença na literatura especializada. “Se quisermos contribuir de alguma forma para a criação de um futuro sustentável, temos de conseguir que seja inaceitável atuar sem levar em conta as gerações vindouras”, afirma Brand.

O “Relógio do Longo Agora”, idealizado por Hillis (que também é o criador da arquitetura paralela maciça dos atuais supercomputadores), é um sistema binário mecânico- digital tão revolucionário quanto exato. Com muitos de seus elementos originais já patenteados, pode ter imprecisão de um dia em 20 mil anos. O incrível é que ele se autocorrige com o sol do meio-dia. É suficientemente impressionante para transmitir às pessoas o que se almejou: a profunda concepção do tempo. “Deve despertar, com relação ao futuro, a mesma inquietude que as fotos da Terra tiradas do espaço provocaram no que se refere ao meio ambiente; são ícones como esses que transformam o modo de pensar das pessoas”, resume Brand.

Como mostra a fundação The Long Now e seu relógio, o futuro se tornou tão importante que não é mais prospectado apenas individualmente; grupos se reúnem para fazê-lo, organizações inteiras surgem para tal –como as usinas do futuro tratadas neste Dossiê.

As primeiras chaminés

Quando me incorporei ao Massachusetts Institute of Technology (MIT), o computador tinha um edifício inteiro para si. Havia custado US$ 11 milhões e era compartilhado por todos os alunos e professores.” Essa lembrança do inventor e futurólogo Ray Kurzweil sugere que, assim como no âmbito da The Long Now Foundation, em lugares como o MIT, cujos claustros e laboratórios são reconhecidos como indiscutíveis usinas do futuro, pensa-se de forma diferente.

O Palo Alto Research Center (Parc) também se destaca como predecessor das usinas do futuro. Nascido em 1970, era a divisão de pesquisa da Xerox: uma equipe de cientistas e pesquisadores de primeiro nível tinha como meta criar a “arquitetura da informação”. Aí foram inventados a impressora a laser, a ethernet, o paradigma da interface gráfica dos modernos microcomputadores, a computação onipresente, entre outros tantos avanços da tecnologia da informação. John Seely Brown foi seu cientista-chefe durante duas décadas. Enquanto liderou o Parc, o autor de A Vida Social da Informação (ed. Makron) e, com John Hagel III, The Only Sustainable Edge (ed. Harvard Business Press) incorporou no campo das pesquisas o aprendizado organizacional, os sistemas adaptativos complexos, a etnografia, a nanotecnologia. Mais uma vez, alguém com a vocação de pensar diferente. Nas palavras de Seely Brown: “Eu estava profundamente comprometido com a inovação radical”.

O “think tank” por definição, contudo, talvez seja a Rand. Um de seus “think tankers”, Carl Builder, especialista em defesa que durante décadas fez pesquisas ali, também escreveu sobre o estímulo ao pensar diferente naquela organização. “Pensar fora da caixa, atrever-se a pensar de modo imaginativo tem sido uma característica consistente da Rand, desde os tempos de sua associação com a Força Aérea dos Estados Unidos.”

A Rand nasceu em 1945 como Projeto Rand –uma reunião sonora das palavras “research”, “and” e “development” (pesquisa e desenvolvimento, em inglês)– para colaborar em questões de defesa com a Força Aérea norte-americana e sua associada, a empresa Douglas Aircraft.

Em 1948, tornou-se uma organização sem fins lucrativos e independente, batizada de Rand Corporation, e acrescentou às questões de segurança nacional interesses em áreas como política doméstica, ciência, tecnologia e transporte. Com longa lista de prêmios Nobel em sua folha de pagamento, a Rand foi, sem dúvida, uma das primeiras “chaminés” a pensar no futuro.


Fonte: HSM Management, por Graciela González Biondo