Coisas estranhas acontecem nos laboratórios de Gary Flake – cem patentes registradas em menos de três anos e foco na computação nas nuvens são algumas delas. Será que esse “cientista maluco” conseguirá, com sua start-up permanente, virar o jogo (e o mercado) a favor da Microsoft?
Você aceita uma Coca-Cola?”, perguntou Bill Gates. Era 2005, e Gary William Flake, responsável pelas pesquisas do Yahoo!, visitava a Microsoft, após um ano de convites. Mas Flake achava que já tinha o melhor emprego do setor.
Gary Flake só concordou em ir de San José, na Califórnia, até Redmond, em Washington, quando soube que quem queria falar com ele era Bill Gates (nenhum nerd que se preze recusa um convite desses). E ele estava ali, recebido por Gates, o “homem da tecnologia” mais famoso e rico do mundo.
Qual o motivo da honraria? Flake trabalhou no setor de desenvolvimento da Overture, onde ajudou a construir a tecnologia de busca de anúncios que se tornaria dominante no modelo de negócio da internet. O Google explorou o recurso como ninguém, enquanto o Yahoo!, que pretendia a mesma coisa, acabou comprando a Overture.
Agora a Microsoft desejava levar Flake, e não era só ela. Dias antes do encontro com Gates, o “doutor Flakenstein”, como alguns o chamam, havia tomado café da manhã com Larry Page, um dos fundadores do Google. “É sério que você está indo para a Microsoft?”, perguntou Page. Flake negou. A conversa com Gates durou 45 minutos a mais do que o agendado.
Flake queria decifrar a mente do fundador da Microsoft, mas foi este que conseguiu a façanha. Como funcionava a busca na internet e os anúncios online? Como a Microsoft, uma disciplinada (e às vezes lenta) produtora de softwares, poderia transformar pesquisas em produtos de forma mais rápida? Será que a empresa precisava de alguém para injetar criatividade e tornar mais ágil a cultura da casa? “A humildade e a franqueza dele me impressionaram”, conta Flake.
Após a reunião, ele telefonou para a esposa e confessou: “Acho que quero trabalhar na Microsoft”. As plataformas e os aplicativos para computadores desktop respondem pela maior parte do lucro anual da Microsoft, estimado em US$ 17,7 bilhões. Seus produtos rodam em mais de 90% dos computadores do planeta. É o que sustenta a empresa e concentra a atenção da maioria dos 92 mil funcionários em 2007. Não é de espantar que demore para perseguir outras tecnologias. Mas, com isso, a Microsoft ficou para trás em alguns dos maiores setores do mundo tecnológico.
Enquanto Steve Ballmer, presidente da companhia, declarava que o futuro depende da venda de anúncios e não de programas, e vislumbrava um panorama de “programas acompanhados de serviços” (aplicativos combinados com recursos de internet), outras empresas, como Google, Facebook e Apple, investiam pesado (e saíam na frente) em atividades mecanismos de busca, redes de relacionamento e música online. São elas, e não a Microsoft, que se destacaram como inovadoras.
Nada mais de incrementalismo
Para Gary Flake, 41 anos, adepto da tecnologia que não foge da experimentação e dos riscos, esse paradoxo representa uma oportunidade –não apenas de acelerar as coisas na Microsoft, mas de avançar radicalmente no campo da internet. Ele não pretende fazer melhorias incrementais, e sim dar os passos tecnológicos necessários para criar aplicativos visualmente sedutores, que vão oferecer novas maneiras de exibir e organizar as informações da web.
Para Flake, o alcance sem paralelo da Microsoft (mais de 1 bilhão de usuários) representa um poder coletivo igualmente único. E, quanto mais as pessoas contribuírem com dados para um site, maior a riqueza oferecida aos usuários. A Microsoft deu a Flake o raro e importante papel de fellow técnico (algo como um visionário com liberdade de ação e poderes de vice-presidente), fato inédito para um profissional vindo de fora.
Em janeiro de 2006, Flake criou os Live Labs, equipe de desenvolvimento rápido voltada para a web, paralela às equipes de produtos. Como explicou aos executivos, “apesar de toda a badalação dos últimos anos, ainda subvalorizamos a proposta real que a internet representa para a sociedade”.
O chefe de Flake é Ray Ozzie, outro adepto da internet, contratado em 2005 como diretor técnico. Com ele, a empresa criou vários laboratórios de inovação para chegar a produtos como o adCenter e o Microsoft Office. O de Flake é o maior (inclui 170 pesquisadores, engenheiros e designers) e o mais independente.
Em menos de três anos, os Live Labs lançaram dezenas de tecnologias novas (Flake registrou mais de cem patentes). Alguns lançamentos levaram semanas, velocidade recorde em uma empresa onde vigoram ciclos de desenvolvimento de vários anos, em geral novas versões de softwares existentes. Diversos produtos também foram criados ou estão em gestação.
O Microsoft Volta é um serviço da web que auxilia na programação de softwares complexos. O Political Streams mapeia a atividade de um blog e deve fazer parte de um produto de análise de blogs que vai identificar e acompanhar os memes mais populares da internet.
E em agosto do ano passado os Live Labs lançaram o Photosynth, aplicativo que oferece uma maneira totalmente nova de ver fotos online. O lançamento do Photosynth ilustra a vocação para a web de Gary Flake. Graças ao poder das redes, o resultado será maior quantidade de fotos de mais lugares, mais ingredientes para a cooperação e mais experiências partilháveis.
Para Flake, a internet está se tornando um espelho do mundo real, e o Photosynth seria uma espécie de intermediário entre o Second Life e a vida real. Mas o novo homem forte da Microsoft acredita que o maior impacto de sua equipe será a atuação como “start-up permanente”. Como os Live Labs não estão associados a um grupo de produtos específico, suas iniciativas tendem a atingir toda a empresa, disseminando novas tecnologias e equipes para outras divisões, revigorando a cultura nesse processo.
Como o apelido “Flakenstein” sugere, Gary é uma espécie de cientista maluco, com gosto por referências da cultura pop e um crédito para nerd nenhum botar defeito: aprendeu a codificar computadores sozinho aos 11 anos e, com 20 e poucos, depois de concluir a tese de doutorado sobre aprendizado automatizado, dedicou três anos à elaboração de um livro sobre ciência da computação.
A obra Computational Beauty of Nature aborda o legado de pensadores (de Newton ao filósofo grego Zenão), além da forma como os neurônios processam a informação no cérebro e o comportamento das formigas. Quando a notícia da ida de Flake para a Microsoft chegou ao mundo da tecnologia, soou como traição.
No Slashdot, site de notícias do mundo informático, um post acusou: “Você não resistiu ao lado negro da força, caro Flake”.
“Se eu fosse mais jovem, talvez encarasse o mundo nos termos ‘8 ou 80’, Apple ou Microsoft. Mas já vivi um pouco e percebi que o que eu achava certo ou errado nem sempre era isso. Existem muitas sutilezas, o que torna o mundo mais interessante”, explica Flake. Para ele, o desafio de desenvolver tecnologias e negócios novos na Microsoft não decorre da falta de habilidade ou de orientação, e sim de uma falha no processo. À frente dos Live Labs, ele não quer apenas inovar: quer criar a melhor metodologia para a inovação, possível de ser estendida a outros laboratórios da empresa.
Flake está dedicado a solucionar o que considera a desvantagem fundamental da empresa: o descompasso entre os pesquisadores e os engenheiros de produto. A princípio, o primeiro grupo deve explorar a tecnologia em longo prazo, como se estivesse em uma universidade. Já os engenheiros, antenados com necessidades dos clientes, confiabilidade e longos ciclos de desenvolvimento, têm pouco tempo para fazer experimentos e raros incentivos para ousar. Segundo Flake, os Live Labs funcionam como uma ponte.
Os membros de sua equipe, nas palavras dele, são “pedras de Roseta humanas”, pois traduzem o código dos cientistas e também dos profissionais mais pragmáticos. “Ao recorrer aos protótipos rápidos e criar um canal entre a pesquisa e a engenharia, os Live Labs se revelaram uma forma nova e eficiente de incubar novas ideias”, explica. A “fábrica de start-ups” dos Live Labs é formada por pequenos grupos de dois ou três pesquisadores e engenheiros, que se dedicam a projetos de curto prazo para desenvolver uma ideia. Para evitar a continuidade de iniciativas sem futuro (falha comum nas incubadoras internas), o sistema realiza uma revisão periódica.
Em 2007, por exemplo, Flake e sua equipe “deletaram” o Listas, aplicativo de gestão de listas, como diz o nome, em atividade havia meses. Flake deixou claro para o time que não há problemas em correr riscos. Queria que os Live Labs tivessem um escritório no centro de Seattle e, por conta própria, encontrou um lugar similar a um loft, desafiando os alertas de outros executivos de que a localização fora do campus seria suicida.
Hoje a unidade é o orgulho da Microsoft, com espaço para projeção e área de reuniões forrada com papel de parede cor de laranja, apelidada de “bordel”. Da mesma forma, quando o MSN, portal de web da empresa, se recusou a divulgar o Photosynth em sua página se o produto não exibisse o nome, logotipo e endereço de web do MSN, os Live Labs o lançaram sozinhos. “Somos como um artista na corda bamba, funcionando como uma start-up ao mesmo tempo que administramos as relações dentro da Microsoft”, conta Alex Daley, 29 anos, gerente de produtos dos Live Labs. Ele também tem bom currículo infotecnológico: iniciante em Rutgers, universidade do estado de Nova Jersey, deu aulas de ciência da computação e, na graduação, cuidou do departamento de tecnologia de informação da instituição.
Caso Photosynth
Para entender os desafios que Flake e os Live Labs precisam enfrentar, o melhor exemplo é o Photosynth. O projeto começou depois que Flake comprou a Seadragon, start-up fundada por Blaise Agüera y Arcas, 33 anos, que se dedicou por muito tempo ao desenvolvimento de uma forma de exibir imensas quantidades de informação visual.
O programa permite ao usuário ter uma visão geral de cada página de um livro e, depois, aproximar o zoom até cada caractere –e tudo em alta resolução. A compra, realizada dois meses após a criação dos Live Labs, deu à então pouco conhecida equipe uma “distração” para atormentar os grupos de produtos, conta Brett Brewer, diretor de incubação de Flake e na Microsoft há dez anos.
Também mostrou como Flake poderia usar os Live Labs como instrumento de recrutamento, atraindo codificadores da internet que pensam fora do modelo comercial da Microsoft. (A credencial de nerd de Agüera y Arcas: iniciou a Seadragon aos 27 anos e recentemente foi apontado pela Technology Review como um dos maiores inovadores com menos de 35 anos.)
O Photosynth começou a surgir depois que Agüera y Arcas participou do evento anual da Microsoft Research e viu uma reprodução tridimensional criada a partir de fotografias. Três pesquisadores da empresa e a University of Washington haviam desenvolvido um programa para reconhecer os mesmos objetos em várias fotos, calcular a profundidade e reunir as imagens.
Para transformar essa pesquisa em uma experiência fluida, ocorrida em segundos e em qualquer laptop (em vez de dias e em computadores poderosos), Agüera y Arcas organizou uma equipe que se dedicou a montar um protótipo básico em 2007 e ouviu as impressões da comunidade tecnológica. O Photosynth sintetiza a estratégia de “software mais serviços” defendida por Ballmer. As fotos são armazenadas online, no mundo irreal (ou “nas nuvens”), na Microsoft, e o programa se incumbe do processamento dos dados necessários para a criação da realidade 3D no computador do usuário.
Gosto pelo risco e mais designers
O Photosynth envolve uma habilidade de design incomum para a Microsoft. Motivo: a proporção entre engenheiros e designers nos Live Labs é de dez para um, e não de cento e poucos para um, como o usual. E, graças a Flake, os gerentes de produtos não têm automaticamente a palavra final sobre o design. “Não digo que trabalhar com Gary é igual a trabalhar com Steve Jobs”, revela Don Lindsay, veterano da Apple disposto a sair da Microsoft até encontrar Flake e entrar em sua equipe para atuar como diretor de design. “Mas chega perto.”
E a criatura do Dr. Flakenstein?
Ainda há inquietações sobre o impacto dos Live Labs (e, por extensão, de Gary Flake). O Photosynth, como a maioria dos novos serviços da web, é grátis. E como o projeto se paga? Flake responde: “De várias formas. Dá para fazer links para lojas ou produtos que aparecem nas fotos, exibir um anúncio ou transformá-lo em um evento comercial. Imagine o que isso significa para os setores imobiliário e hoteleiro e para as atrações turísticas”. Mesmo que o Photosynth seja bem-sucedido, gerará pouco dinheiro na comparação com o Windows ou o Office, mas Flake não está preocupado. E insiste: os Live Labs devem criar projetos e líderes capazes de exercer impacto acumulativo por toda a empresa nos aspectos financeiro, tecnológico e cultural.
Mas existem dados concretos, como o aumento do tamanho da equipe do Photosynth, que triplicou desde o lançamento do produto, quando foi realocado no MSN (há planos para incorporá-lo em vários canais, como o Virtual Earth), e também evidências de que o modelo de inovação dos Live Labs atinge outras partes da Microsoft.
Agüera y Arcas, hoje importante integrante do MSN, está desenvolvendo um laboratório de pesquisas aplicadas, e Ozzie, chefe de Flake, montou um novo laboratório start-up em Boston. Os dois seguem a metodologia dos Live Labs. É cedo para dizer, mas a criatura do “doutor Flakenstein” ficou em pé e já começa a caminhar.
Fonte: Revista HSM – por Fast Company – distribuído pela Tribune Media Services International.