Você está preocupado com a precarização trazida pela flexibilização das leis trabalhistas? Como mostra um estudo BCG, que focou o Brasil e mais três países, há grandes riscos envolvidos nesse movimento, mas também oportunidades, para trabalhadores e empresas.
A economia gig costuma ser percebida como uma ameaça crescente à estabilidade do emprego e aos direitos trabalhistas, gerando vagas de baixa qualificação e remuneração, que oferecem aos profissionais pouco do apelo ou dignidade de um empregador tradicional. Discussões sobre políticas públicas e artigos na mídia com frequência retratam plataformas digitais de compartilhamento profissional – como Uber, TaskRabbit e Upwork – como fontes de exploração, real ou potencial, que minam a infraestrutura de trabalho e segurança social estabelecida em economias maduras um século atrás.
Para entender em que medida esse temores estão calcados na realidade, o BCG Henderson Institute, como parte de seu projeto “Future of Work”, conduziu uma pesquisa global de larga escala com trabalhadores com o apoio da Research Now SSI, e pesquisas adicionais.
Nossa amostra intencionalmente incluiu uma porção significativa de trabalhadores com níveis salariais e educacionais abaixo da média de seus países. Incluímos esses respondentes para refletir as visões, necessidades e circunstâncias empregatícias dos trabalhadores potencialmente mais vulneráveis à disrupção, e para evitar o risco de descobertas artificialmente edulcoradas.
Nossa amostra também incluiu trabalhadores na onda em alta do que chamamos de novos free-lancers – ou seja, aqueles que encontram trabalho temporário por meio de plataformas digitais de compartilhamento do trabalho. Esse grupo, produto de nossa era de disrupção digital, com frequência é percebido como a vanguarda sem direitos da economia gig.
Os resultados da pesquisa, junto com uma pesquisa separada com executivos de vários setores e entrevistas com líderes empresariais e fundadores e executivos de plataformas de compartilhamento do trabalho, oferecem uma visão mais nuançada da economia gig emergente. Em particular, nossa pesquisa enfatiza as oportunidades significativas de colher benefícios com esse novo formato de trabalho – tanto para trabalhadores como para empresas. Muitos dos novos free-lancers que entrevistamos estão abraçando a tendência como um caminho para maior autonomia e trabalho mais flexível e significativo.
No caso das empresas, os achados destacam que as plataformas gig aumentam o acesso a novas e sofisticadas habilidades tecnológicas e a profissionais imprescindíveis, mas difíceis de achar nos mercados de trabalho convencionais. Mais amplamente, nossa pesquisa revela que o trabalho gig é apenas um elemento de um ecossistema emergente que inclui outras formas de mudança do mundo profissionais – como trabalho temporário, terceirização e trabalho autônomo – ao lado de uma gama de serviços de apoio.
O resultado é uma mudança profunda na forma como empresas contratam, treinam, recompensam e gerem os funcionários. Os novos free-lancers – produto de nossa era de disrupção digital – são tanto beneficiários como vítimas da disrupção. Esse equilíbrio entre disrupção e oportunidade surgiu em nível pessoal nas respostas a nossa pesquisa com trabalhadores: o número deles que afirmou ter perdido o trabalho para a terceirização se igualou ao número que reconquistou o emprego pelo mesmo motivo. Mais de 30% daqueles que voltaram a trabalhar creditaram o trabalho gig online como o que lhes permitiu se reintegrar à força de trabalho.
Em meio a tal turbulência, apesar de não haver um número líquido de perda de postos, é fácil focar no desconforto resultante. Ainda assim, a mudança disruptiva também está forçando a uma maior adaptabilidade geral no sistema profissional, criando novas oportunidades nos mercados de trabalho tradicionais e nas empresas.
A REAL MEDIDA DA ECONOMIA GIG
Por mais que a economia gig seja descrita como um fenômeno global de forte e rápido crescimento, continua relativamente pequena em métricas importantes. Nossa pesquisa mostra que o uso das plataformas de compartilhamento de trabalho pelos trabalhadores como fonte principal de renda ainda é relativamente modesta, especialmente em mercados maduros.
Nos EUA, Alemanha, Suécia, Reino Unido e Espanha, apenas 1% a 4% dos trabalhadores citaram essas plataformas como fonte primária de trabalho. Porém, essa parcela é maior em quatro mercados em desenvolvimento de nossa pesquisa – China, Índia, Indonésia e Brasil. A fatia é maior na China, onde 12% dos trabalhadores disseram que tinham como fonte principal de renda as plataformas.
Isso sem dúvida reflete uma maior proporção de emprego informal nos mercados emergentes. E também que os trabalhadores desses mercados adotaram as plataformas mais rápido do que os dos mercados maduros. Essa métrica, porém, pode subestimar o real tamanho e significado do crescimento global. Entre 3% e 10% dos trabalhadores em economias maduras, e mais de 30% em alguns países em desenvolvimento, disseram usar plataformas gig como fonte secundária de renda. Executivos corporativos reconhecem que o aumento dos novos free-lancers terá impacto significativo em suas forças de trabalho.
Em uma pesquisa de 2018 com 6,5 mil executivos do mundo todo, feita pela BCG com a Harvard Business School, cerca de 40% dos respondentes disseram que esperavam que os trabalhadores freelance representassem uma parcela maior da força de trabalho de sua organização nos próximos cinco anos. E 50% concordaram que a adoção corporativa de plataformas gig seria uma tendência significativa.
ALEXA, ME ARRUMA UM DESIGNER DE SOFTWARE
O discurso corrente sobre o tipo de trabalho que domina a economia gig geralmente foca tarefas sob demanda de entrega e mobilidade, tais como Uber e Lyft. Segundo nossa pesquisa, porém, os novos free-lancers são ativos em todos os setores – incluindo negócios B2B, vendas no varejo e educação.
Resumindo, os free-lancers digitais surgiram como fonte significativa de emprego primário ou secundário em todos os grandes setores, dando virtualmente a todas as companhias acesso a novos free-lancers. Em princípio, focamos nossa pesquisa em trabalhadores de menor nível educacional e remuneração mais baixa.
Mas a percepção de que este é o foco principal da economia gig também se provou falsa. Tarefas de baixa qualificação e baixa remuneração representaram apenas metade do trabalho freelance fornecido pelas plataformas.
Muito do restante correspondia a trabalho de alta qualificação e muito bem pago, como desenvolvimento de software e design. As plataformas em si também não são iguais. Diferem em estrutura e outras maneiras significativas, incluindo o tipo de trabalho oferecido, o tipo de free-lancer em busca de trabalho e a natureza do contrato de trabalho.
Plataformas tendem a se diferenciar entre as que são donas da relação com o trabalhador e atribuem e processam o trabalho em nome do empregador por meio da plataforma, e aquelas nas quais free-lancers individuais e empregadores negociam os termos. Os tipos e motivações dos trabalhadores gig que usam os vários tipos de plataformas diferem segundo o modo de usar a plataforma gig e o grau de integração com o cliente.
Identificamos quatro “tribos” entre os novos free-lancers:
- Os nômades digitais. Negociam sob medida na plataforma e se mantêm distantes dos clientes. Exemplo: desenvolvedor web da Upwork
- Os especialistas a jato. Negociam sob medida na plataforma, mas se integram aos clientes. Exemplo: gestor interino da Twago Enterprise
- Os clickworkers autônomos. Recebem as encomendas da plataforma e se mantêm separados dos clientes. Exemplo: pessoas que fazem “bicos” na Amazon Mechanical Turk. [O termo “clickworkers” se refere a voluntários leigos em um assunto.]
- Os mordomos digitais. Recebem as encomendas da plataforma, mas se integram com os clientes. Exemplo: motorista de Uber e faz-tudo na TaskRabbit.
A PERCEPÇÃO DOS FREELANCERS
Ao contrário das afirmações disseminadas, a maioria dos free-lancers que entrevistamos disse que não faz esse tipo de trabalho por falta de opção. Com frequência fazem trabalhos avulsos além de terem outro emprego em tempo integral.
Para a maioria, as plataformas ajudam a atingir metas, preferências e necessidades além da remuneração, incluindo, segundo eles, mais autonomia e flexibilidade no trabalho e na vida pessoal, e melhores escolhas de projetos. Para mulheres, minorias e trabalhadores em mercados emergentes que tinham menos ou nenhuma possibilidade de emprego, as plataformas criaram ou expandiram suas oportunidades ao tornar possível o trabalho remoto.
Free-lancers costumam encontrar trabalho em vários tipos de plataforma além de fazê-lo em suas próprias redes pessoais, e geralmente trabalham em vários projetos ao mesmo tempo ou na sequência.
Quando chamados a definir seu emprego futuro preferido, cerca de 45% escolheram permanecer independentes e adicionar clientes só na medida que for necessária para aumentar suas rendas, comparados com apenas 20% que preferiam encontrar uma posição assalariada em tempo integral.
Globalmente, e para vários tipos de trabalhadores, um trabalho mais significativo era prioridade máxima, ao lado de maiores ganhos. Os novos free-lancers não são exceção.
Os três maiores benefícios que citam são a oportunidade dedicar tempo a tarefas mais significativas e interessantes, ser autônomo e encaixar o trabalho em tempo integral de forma mais flexível diante das necessidades pessoais.
Consequentemente, também afirmaram ter níveis mais altos de satisfação e felicidade no trabalho do que pessoas em empregos em tempo integral, apesar do fato de que mais possivelmente trabalhassem mais de 45 ou até 60 horas por semana, para ganhar salários ligeiramente menores, especialmente no caso de free-lancers como fonte principal de receita.
EM EVOLUÇÃO
Historicamente, free-lancers eram contratados por empresas dispostas a obter melhor o custo-benefício de usar trabalhadores de baixa qualificação e valor em processos não centrais. Mesmo em mercados muito regulamentados como França e Alemanha, contratar um free-lancer não implica oferecer assistência médica e previdência, como recebem os assalariados.
Free-lancers têm sido um recurso disponível e flexível para completar equipes de projetos, preencher lacunas de competências e cobrir picos de demanda. Hoje, porém, são cada vez mais acionados como fonte de talento e expertise escassos por empresas que precisam se adaptar à mudança das demandas dos clientes.
Operadores de plataformas de compartilhamento de trabalho e fornecedores de gestão da força de trabalho, pivotando para uma nova oportunidade de negócios, estão focando clientes corporativos com serviços que os ajudam a administrar a mudança para o mundo de trabalho freelance, enquanto mantém a flexibilidade e a qualidade do trabalho.
A mudança na estratégia corporativa no sentido de abraçar trabalhadores gig – apesar da disrupção para a empresa e para trabalhadores individuais – mostra que as companhias em geral estão tentando se tornar mais adaptativas e resilientes em um ambiente de negócio em rápida mudança.
EMPRESAS SE ADAPTAM
A economia gig parece ter chegado para ficar, principalmente porque satisfaz as necessidades tanto de trabalhadores como de companhias. Acionar o talento e as competências dos novos free-lancers imporá uma curva de aprendizado para as empresas. As motivações e aspirações dos trabalhadores gig com frequência diferem significativamente dos empregados tradicionais – e portanto da experiência da maioria dos funcionários corporativos.
Para tirar o melhor dos novos free-lancers, executivos em empresas tradicionais precisarão adaptar suas práticas de gestão e estratégias.
Aqui vão alguns passos que as empresas podem tomar para entrar no ritmo da economia gig:
• Adotar o trabalho gig e plataformas correspondentes para aumentar a flexibilidade da empresa, especialmente para atrair habilidades e talentos raros e específicos.
• Mapear as habilidades da organização e o que falta, para inclusive saber o que será necessário no futuro.
• Definir a estratégia de contratação de free-lancers, com plataformas prontas ou construindo uma própria.
• Não apenas contratar free-lancers, mas integrá-los. Para fidelizar os talentos, as empresas precisam adotar novas competências, sistemas de apoio e formas de trabalho, evitando atrito com os contratados e retrabalho, o que exige a disposição e a flexibilidade para criar workflows e processos mais adaptáveis.
• Tirar vantagem dos serviços de apoio da economia gig, que vão além da área financeira dos marketplaces. Hoje há tecnologias adjacentes, que incluem processamento de pedidos e seguro para free-lancers, e o desenvolvimento de espaços de trabalho compartilhados online e off-line.
• Envolver-se no diálogo regulatório. A regulamentação do trabalho gig evolui rapidamente. Por exemplo, a Nova Zelândia aboliu os plantões, a Irlanda mudou a definição legal de trabalho autônomo, os tribunais norte-americanos enfrentam processos de motoristas do Uber que exigem status de funcionário, um questionamento do parlamento inglês chamou o trabalho gig de “parasitismo do estado de bem-estar” e greves de trabalhadores gig na Holanda forçaram o governo holandês a estabelecer uma força tarefa para estudar o fenômeno. Essas ações todas envolveram trabalhadores gig de baixa qualificação, mas isso também pode ocorrer com os de alta. A melhor forma de agir é se manter em diálogo com reguladores, legisladores, donos de plataformas e formadores de opinião, além de monitorar a opinião pública.
Free-lancers não são a única opção para empresas que pretendem preencher lacunas de talento crítico de maneira flexível e criar um modelo de emprego mais adaptativo, é claro. Mas, sem dúvida, eles podem ser peças importantes no quebra-cabeças. E, apesar dos desafios que os free-lancers autodeterminados enfrentam em muitos países, o trabalho gig oferece claros benefícios a essas pessoas que valorizam flexibilidade e autogestão.
CONSCIÊNCIA
Seja para pessoas que moram em locais distantes, donos de casa com horários de trabalho restritos ou pessoas com deficiências físicas sem acesso ao mercado de trabalho regular, o trabalho gig oferece oportunidades de trabalho com mais significado. Empresas conscientes e diligentes podem atrair, remunerar e manter free-lancers – além dos trabalhadores convencionais – e, assim, cumprir um papel social importante como empregadores. Ao mesmo tempo, elas fortalecem o tecido social e os talentos de sua própria organização.
Fonte: Revista HSM Management 132, originalmente publicado em inglês pela consultoria BCG, pelos autores:
- JUDITH WALLENSTEIN é sócia sênior e diretora da consultoria Boston Consulting Group (BCG) em Munique, Alemanha.
- ALICE DE CHALENDAR é consultora em Paris;
- MARTIN REEVES é sócio sênior e diretor do BCG em Nova York e diretor do BCG Henderson Institute
- ALLISON BAILEY é sócia-sênior e diretora do escritório de Boston, além de líder global de pessoas e prática organizacional.