A G.E. América Latina é quase idêntica à matriz, nos EUA, ou à GE China nos processos básicos de gestão e operação. Haverá espaço para o Brasil? Nessa entrevista, o brasileiro Marcelo Mosci, líder regional da companhia, conta como o Brasil virou prioridade e discute a cultura GE.
Saiu Edmundo Vallejo, entrou Marcelo Mosci. Saiu um mexicano, entrou um brasileiro no comando da General Electric na América Latina. Bom sinal para o Brasil? Não necessariamente, porque a G.E. consegue alinhar pessoas do mundo inteiro por meio de sua cultura de performance e compliance. Mas o fato é que o Brasil e seus vizinhos viraram prioridade da companhia. Em entrevista exclusiva a José Salibi Neto, chief knowledge officer (CKO) do HSM Group, Marcelo Mosci mostra como um brasileiro se insere na cultura GE e a analisa.
Você já tinha trabalhado na GE e deixado a empresa por opção própria. O que o motivou a retornar?
O que faz uma pessoa deixar uma organização é sempre algum tipo de frustração –e não foi diferente comigo. Mas minha frustração era localizada [Mosci trabalhava como gerente-geral sênior do negócio global de raios X na unidade de negócios G.E. Healthcare] e não com a corporação.
Então, recebi um convite e acabei indo trabalhar na Baxter [uma das empresas líderes mundiais em equipamentos e terapias da área de saúde], onde fui o responsável pelas operações da América Latina –operações mesmo, do tipo fábrica, engenharia etc. Foi uma boa decisão minha, porque aprendi muito.
Meu retorno à G.E. teve a ver com essa experiência que eu ganhei de América Latina. Vivi anos e anos das dificuldades econômicas da região e, quando vi que sua nova plataforma econômica poderia despertar na GE a disposição de aumentar sua presença, isso soou para mim como uma oportunidade de agregar muito valor. Também me animou o fato de que a equipe de líderes incluía colegas de tempos anteriores e até pessoas que eu contratara. Além disso, tenho de admitir, acho que meu DNA sempre foi GE, é difícil fugir dele.
O que você quer dizer exatamente com disposição da GE de expandir a presença na América Latina?
Quero dizer que aumentou a aposta da G.E. na região, os planos agora são de muitos investimentos e forte crescimento. Em 2007, pela primeira vez em sua história, a G.E. faturou mais no restante do mundo do que nos Estados Unidos. Continuaremos crescendo forte nos mercados emergentes e a América Latina é um dos motores para esse crescimento. A fórmula é uma combinação de tecnologia em produtos e serviços e contínuos investimentos.
Queremos atender às necessidades de infra-estrutura, indústria, crédito, saúde etc, enquanto buscamos novas oportunidades. Mas este é um período para ser criterioso na alocação de investimentos. A GE manterá seu foco nas áreas onde sua capacidade tecnológica pode contribuir. O crescimento orgânico da companhia é uma meta, mas também buscamos associações e aquisições locais que tenham sinergia com nosso portfólio.
Qual é seu papel no dia-a-dia da GE América Latina? Sei que a corporação atua de maneira bastante descentralizada, com as unidades se reportando diretamente às chefias das várias divisões na matriz. Como se consegue fazer diferença num esquema desses?
De fato, a organização corporativa é matricial. Temos seis grandes negócios na companhia –entertainment, commercial finance, consumer finance, consumer and industrial, healthcare e infrastructure– e, se você entrar em cada um deles, descobrirá muitos outros negócios.
E todos eles estão representados na região, que abrange a geografia inteira da América Latina, o que significa México, América Central, Caribe e América do Sul. Eu me reporto diretamente ao presidente corporativo da G.E. Internacional, também sirvo de certa forma aos CEOs de cada um dos negócios e líderes funcionais globais.
Então, na prática, você tem vários chefes… [risos]
Como eu entro com o papel corporativo na América Latina, tenho três responsabilidades básicas. A primeira delas, inegociável, é de ser guardião da integridade da GE na região, do compliance [cumprimento de leis e políticas], que é extremamente importante na nossa cultura.
Minha segunda responsabilidade tem a ver com comunicação, relações públicas, relações com o governo, relações com o mercado de maneira geral. E a terceira é uma função particularmente interessante, ligada a crescimento.
Nós atuamos como se fôssemos uma holding, pavimentando o caminho para os diversos negócios passarem, ou seja, mostrando-lhes oportunidades de investimento e crescimento na região. Por essa razão, mesmo não sendo responsável direto por nenhum desses negócios, individualmente sou avaliado pela performance de todos eles na América Latina.
A corporação é, na GE, a área do Jeff Immelt e foi, antes, do Jack Welch. Você trabalhou para os dois, certo? O que mudou de um para outro?
Acho que são executivos de personalidades diferentes, mas feitos do mesmo material, ou seja, ambos com o DNA e os valores da G.E., ambos com o objetivo comum do crescimento da companhia. Eu convivi pouco com o Jack, na verdade, porque ainda estava começando na organização em sua época. Em meus contatos com ele, sempre o senti muito objetivo e pragmático. Eu sempre sabia exatamente onde ele estava posicionado.
E o Jeff não é diferente nisso. Ele também deixa claríssimo qual é sua visão. É muito fácil se engajar na equipe do Jeff, porque a transparência é total. Talvez a maior distinção esteja não neles, mas nas épocas em que cada um assumiu o comando.
O Jack viveu uma fase de crescimento nos mercados de base, fez muitas aquisições e fundamentou os negócios com a melhoria das operações. O Jeff está buscando novas oportunidades em outros mercados [fora dos Estados Unidos e da Europa].
O Jack Welch parecia mais focado em performance interna e aquisições. A inovação é uma aposta mais do Jeff Immelt?
Eu diria que a G.E. sempre foi uma empresa de tecnologia e inovação, independentemente do CEO. Inovação está no DNA dela, desde o fundador Thomas Edison. Mas o programa de inovação atual, o Ecoimagination, orientado para investimentos em produtos que sejam reconhecidos pelo mercado como mais amigáveis ao meio ambiente, não deixa de ser também uma visão do Jeff. E ele a lançou num momento até difícil, quando haviam acontecido coisas complicadas no cenário mundial. Foi visionário.
Nós, da HSM, percebemos em nossa convivência com o Jack Welch que, quando você fala de Índia, os olhos dele brilham; se você fala de China, também; mas, se você fala de Brasil, ele muda de assunto. Por quê? Será que hoje isso seria diferente?
Eu tenho certeza de que seria diferente se ele vivenciasse a região hoje como CEO da G.E. Acho que isso não era uma atitude do Jack, mas uma atitude do mercado nas duas últimas décadas do século 20. Quando você fala de uma região que tem 80% de inflação em um mês, em que é muito difícil saber se você está ganhando ou perdendo dinheiro, ninguém se anima. Foi a imagem que ficou na cabeça dele.
Já o Jeff está vivendo um momento novo, de estabilidade. Acho que a G.E. sempre se comportou adequadamente na América Latina e especificamente no Brasil. Vivemos os mais diferentes ciclos da economia aqui e, como temos visão de longo prazo, permanecemos.
Não estamos deixando de perceber que existe um momento de estabilidade que, ao que tudo indica, vai levar o Brasil e toda a região a novos rumos. A GE, há quase um século aqui, pode ser vista como um player local.
Mas na comparação com Índia e China…
Evidentemente o potencial de consumo que existe em países como Índia e China é enorme, mas nós faturamos mais na América Latina que na China e na Índia e a meta é duplicar nosso faturamento aqui nos próximos três anos, atingindo US$ 12 bilhões.
Em quais países da América Latina você acredita mais?
Acho que não tem muito mistério, não; a massa crítica de economia e consumo são México e Brasil. Estas são as duas locomotivas da região, tanto pela população como pela economia. Agora, não é possível dizer que Colômbia não venha com força, assim como Peru, Chile –apesar da escala pequena– e também Argentina. A Venezuela, por exemplo, tem 115 bilhões de barris de petróleo de reserva já confirmados e pode chegar a 300 bilhões nos próximos cinco anos, um potencial enorme.
Eu acho que a economia da América Latina vem vindo como um todo, a estabilidade está aparecendo e mostrando o potencial econômico escondido. Nós estamos crescendo 20% ao ano na região.
O percentual de aquisições tem caído muito na G.E. do Jeff Immelt?
A visão da companhia é que se deve crescer anualmente a uma taxa de duas a três vezes o PIB da região. Aqui na América Latina já é o terceiro ano em que a gente entrega um resultado maior do que isso. Para conseguir fazê-lo, recorremos a uma mescla entre crescimento orgânico e inorgânico.
A G.E. sempre foi, em nosso mundo da gestão, sinônimo de foco, apesar de ser uma das empresas mais diversificadas de que se tem notícia. Como você analisa essa questão?
A visão da companhia é focada, sim: ajudar a resolver os grandes problemas das grandes massas do mundo. Se você olhar o portfólio da G.E., ele é muito simples: tem infra-estrutura, porque o mundo precisa de energia, de transporte, de água; tem saúde, porque as pessoas precisam de saúde; tem entretenimento, porque é uma demanda –e uma necessidade– de massa também; tem crédito, porque não se faz quase nada hoje no mundo sem ter crédito, e assim por diante. E eu acho que esse portfólio diversificado se encaixa em nossa visão e é saudável. Porque os segmentos de mercado variam de demanda de um momento para outro: quando tem demanda menor, outro o compensa com demanda maior, e isso confere equilíbrio aos negócios.
A G.E. tem liderado esse movimento de inovação verde e de sustentabilidade, que você já mencionou. Imagino, inclusive, que a aposta na América Latina tenha muito a ver com isso, não? Como o Ecoimagination se encaixa no foco?
A G.E. se preocupa em ajudar a resolver os grandes problemas do mundo, e o problema ecológico é um deles. Estamos alinhados com isso na essência, não embarcamos no modismo. Agora, para resolver esses grandes problemas do mundo de maneira sustentável mesmo, nós vamos precisar do investimento de todas as grandes corporações.
É importante dizer que vemos tudo isso como uma oportunidade de negócio, não uma bandeira social. Hoje, ajudar a conservar energia e combustíveis, ajudar a conservar água, ajudar a dar uma qualidade de vida melhor para as pessoas são negócios promissores.
E o mercado tem confirmado isso, por exemplo, respondendo positivamente aos investimentos pesados da G.E. no desenvolvimento de uma locomotiva 15% mais eficiente em energia do que o modelo anterior. Ou no de um motor que coloca o avião em velocidade de cruzeiro muito mais rápido e com eficiência energética muito maior.
Ou no de uma tubulação com revestimento especial que permite gastar muito menos energia de bombeamento porque tem menos atrito. Ou no de um tomógrafo computadorizado que, em vez de dar um tiro de radiação em todos os tecidos, faz a calibragem por tecido e diminui a área atingida.
E o que dizer do foco nas pessoas, outra máxima da GE?
Eu gostaria de responder ampliando essa pergunta. Como conseguimos manter uma companhia com mais de 320 mil colaboradores no mundo, em diferentes localidades, de todos os níveis [hierárquicos] e com nossa diversidade de negócios, operando no mesmo ritmo, de modo sincronizado?
Isso ocorre, a meu ver, graças a alguns processos globais muito bem fundamentados, que acontecem na mesma época do ano em todas as regiões do mundo, para todas as linhas de negócios. Exemplo disso é o processo de planejamento estratégico –de baixo para cima– no segundo trimestre do ano, que projeta três anos de visão da companhia, e que voltamos a acessar em outubro.
Temos também o que chamamos de “Session 2”, em que pegamos o primeiro dos três anos planejados e o aprofundamos em números e estratégia. Há ainda a avaliação de riscos legais, regulatórios, de saúde, segurança, meio ambiente etc. Na área de recursos humanos especificamente, embora pratiquemos gestão de talentos o ano inteiro, nós formalizamos o processo todo mês de janeiro, quando o Jeff e a administração da companhia dão as diretrizes.
Na conhecida “reunião de Boca”, que acontece em janeiro em Boca Raton [cidade dos EUA], o Jeff e a liderança sênior da companhia comunicam as diretrizes e prioridades para o ano. Isso permeia a organização inteira de baixo para cima. Outro processo de RH dentro do calendário, com a mesma data no mundo inteiro, é a avaliação individual de talentos. Todos esses processos são, na verdade, um mix de avaliação de estratégia com avaliação de organização. Isso mantém a companhia operando no mesmo ritmo em todos os negócios e geografias.
Você falou em avaliação individual de talentos. Aquela regra, um tanto polêmica, de aposta nos 10% de melhor desempenho e demissão dos piores continua valendo numa época pautada pela guerra por talentos? E na América Latina?
Devo dizer que já houve mais rigor nessa regra dos 20-70-10 do que há hoje. Mas, de qualquer maneira, a idéia faz parte do DNA da companhia, a cultura de performance é muito forte na G.E. As avaliações, que levam em conta os relatórios do avaliado e de seu gerente, são orientadas para o negócio, não administrativas.
Não adianta ir bem num ano e ir mal no outro; você nunca está garantido. Tem de entregar resultados e fazer isso respeitando as leis e políticas da companhia. Mas o bom desempenho é o esperado, é o primeiro patamar de avaliação. Depois aparecem agregados adicionais como liderança, formação de talentos, capacidade de ser agente de mudança. É aí que conseguimos medir o grau de diferenciação entre um executivo e outro. Essa é a zona crítica de avaliação e certamente tudo isso se aplica na América Latina, sim.
Essa cultura da G.E., de performance e compliance, fez você se transformar como executivo?
Pergunta interessante. Eu sempre fui um profissional da área comercial e sempre me perguntei se não devia fazer um MBA para aprender um pouco mais da área financeira. Um dia, com um ano e pouco na companhia, em 2000, me mandaram fazer um curso de desenvolvimento gerencial na universidade corporativa da G.E. nos EUA, em Crotonville.
Foram três semanas estudando, incluídos fins de semana, com um grupo de 60 pessoas, um mini-MBA, extremamente concentrado, até com simulações de negócio. Posso dizer que esse curso mudou minha vida profissional. É incrível: você chega lá se achando muito competente e tal, e a primeira coisa que descobre é que as 59 pessoas do seu lado são iguais ou melhores que você. Aí você percebe que tem muito que aprender.
Outra coisa interessante é que você e essas 59 pessoas precisam sentar juntos, escrever e apresentar uma recomendação sobre algum tema previamente definido para o Jeff e seu staff. É um exercício de humildade e de confiança em quem está do seu lado. Isso começa a criar um network, que é também parte importante do sucesso dessa organização.
Hoje, quando eu sento a uma mesa de reunião, passo só 5% do tempo “equalizando” pessoas –nos outros 95%, discuto coisas práticas. Existem empresas em que você precisa passar 50%, ou mais, do seu tempo nivelando pessoas, é terrível. O ambiente gostoso que temos aqui na G.E. tem muito a ver com isso. Sentimos que estamos construindo algo em equipe o tempo todo.
Qual foi seu melhor professor em Crotonville?
Já fiz vários cursos lá e vi excelentes apresentações. No meu primeiro curso, em 2000, o Jack ministrou uma aula de uma hora e meia e foi fantástica. O Jeff e seu staff freqüentemente dão palestras superinteressantes lá.
Essas são oportunidades imperdíveis, pelo conteúdo prático e qualidade dos palestrantes –líderes de alto calibre. Hoje eu também contribuo dando um par de palestras por ano para líderes em desenvolvimento, falando sobre modelos de liderança ou sobre mercados como a América Latina. Ajudar a desenvolver a nova geração de líderes também é uma experiência importante.
Com a internet e a globalização, Crotonville mantém sua importância?
Precisamos de muito capital humano na expansão nas novas terras, então os cursos estão sendo feitos também in loco. Já oferecemos alguns cursos no Brasil. Mas acho que Crotonville continua importante por manter o DNA da companhia.
Você vê vantagens e desvantagens no ambiente internacional por ser um gestor brasileiro?
Nascemos tendo de lidar com inflação e com crise. Isso faz parte da nossa cultura e diferencia o brasileiro internacionalmente, sim. Eu acho que a gestão brasileira hoje é uma gestão sólida, agressiva, com uma visão transparente das coisas, uma capacidade de discernimento que já foi muito desenvolvida, pelas dificuldades enfrentadas no País.
E como você desenvolveu a capacidade de gerenciar essa quantidade de negócios da G.E.?
No meu currículo interno de avaliação, todos os anos, um dos meus pontos para desenvolver é conhecer melhor o portfólio da companhia. Isso é constante. A companhia segue adquirindo empresas e tecnologias. Então, toda oportunidade que tenho de participar de um treinamento técnico, trato de aprender alguma coisa.
Agora, essa não é a parte mais difícil, não, porque é muito gostoso entender tecnologia e as coisas que podem impactar a sociedade. A parte mais difícil é a do gerenciamento de complexidade organizacional, que requer saber gerenciar por influência. Nessa companhia se gerencia muito pouco por autoridade. Você é respeitado muito mais pelo valor que agrega e muito menos pelo título ou pela banda de carreira que tem. Respondendo à sua pergunta, então, a habilidade que eu sempre recomendo é a de aprender a navegar por influência em vez de usar a autoridade.
Como anda hoje o balanço entre talentos formados internamente e os trazidos de fora, nas unidades da América Latina?
Temos um bom mix disso.
Estamos falando em relacionamento e gestão das pessoas que trabalham para a organização, mas, para finalizar nossa conversa, eu queria saber como é a gestão dos clientes da G.E.
O foco no cliente é algo que está cada vez mais no DNA da G.E. Buscamos mais e mais o sincronismo com o cliente, que significa entendermos como ajudá-lo a ter sucesso. E fazemos isso provendo para ele o suporte certo. Pulamos uma etapa na cadeia de valor, pois temos de nos perguntar o que vai fazer o cliente do nosso cliente comprar dele.
Fontes: Youtube, Wikipedia e Revista HSM com entrevista de José Salibi Neto