A certificação socioambiental foi criada na perspectiva de oferecer garantias para o comércio entre países desenvolvidos e em desenvolvimento. Temos que recordar que tal alternativa decorre do fato de a Organização Mundial do Comércio (OMC) não permitir diferenciar mercadorias em razão de seus processos produtivos, argumentando que eles não têm relevância para o comércio internacional. Foi nesse contexto que alguns setores da sociedade civil e empresarial propuseram a criação de mecanismos que permitissem diferenciar, de maneira voluntária, a origem e o processo produtivo de produtos com importância para o Desenvolvimento Sustentável. Assim, surgiu a Certificação Socioambiental.
Seu principal exemplo, o Forest Stewardship Council (FSC), foi criado no início da década de 1990 com o intuito de oferecer alternativas de compra de madeira tropical para consumidores da Europa e dos Estados Unidos. Se para o consumidor foi criada a garantia, a expectativa era de que a certificação gerasse benefícios econômicos a partir da diferenciação para produtores – fosse por meio de novos mercados, sobre-preços, acesso a novos recursos financeiros, diminuição de risco, diferenciação de impostos, melhoria de imagem reputacional ou outros. Esses incentivos deveriam justificar os investimentos para a adequação às demandas dos “compradores desenvolvidos”.
A premissa básica é que produzir de maneira socioambientalmente responsável gera custos maiores do que de maneira predatória. Isso ocorre sistematicamente em países ou regiões com legislação incipiente ou em que a lei não é aplicada, de forma que não consiga garantir condições para evitar a produção predatória. Isto é, a certificação foi criada como um instrumento econômico com o propósito de aumentar a governança e tansparência e de catalisar processos de adequação socioambiental da produção.
Essa lógica deveria induzir um processo de melhoria contínua rumo à sustentabilidade da atividade primária e de suas cadeias produtivas. Logo, a certificação deveria ser entendida como uma oportunidade a partir do seu caráter voluntário, e não como uma barreira, que cabe à regulação legal dentro e entre países. Atualmente, existem diversas iniciativas de sistemas de certificação socioambiental em de-senvolvimento ou já em aplicação para a agropecuária brasileira, como os da Rede de Agricultura Sustentável (Rainforest Alliance Certified), Utz Certified, Bonsucro, Mesa Redonda da Soja, entre outros.
CERTIFICAÇÃO E SUSTENTABILIDADE
O cumprimento da legislação nacional e de convenções internacionais relativas a condições de trabalho, direitos humanos e meio ambiente é um requisito de grande parte dos sistemas de certificação socioambiental.
Todavia, a certificação não deve se limitar ao cumprimento da lei ou ser um sistema de verificação de legalidade. Do mesmo modo, não deve substituir o papel do Estado de garantir o cumprimento das leis nacionais. As normas de certificação devem partir da legislação, mas superá-la, garantindo um desempenho mínimo consistente em empreendimentos certificados em países que tenham legislações diferentes.
Obviamente, podem ocorrer situações de países que tenham legislações mais rigorosas que as normas de um determinado sistema para algum tema, ou vice-versa. Estudos realizados no Brasil e em vários países do mundo, com legislações e grau de governança muito diversos, têm evidenciado que a aplicação da certificação causa melhorias em áreas como: saúde e segurança do trabalho, relacionamento de empresas com comunidades vizinhas, segurança fundiária, diminuição do uso de agrotóxicos, redução de desmatamento e restauração de ecossistemas naturais, diminuição de produção de resíduos e sua melhor destinação, melhoria da gestão empresarial; maior organização de grupos de produtores.
As normas de certificação socioambiental aplicáveis para a agropecuária podem ter critérios que dialoguem com o Código Florestal em três áreas: desmatamento ou conversão de ecossistemas naturais, proteção da biodiversidade e restauração de ecossistemas. Sistemas como o do FSC e da Rede de Agricultura Sustentável (RAS) têm critérios explícitos que impedem a certificação de áreas desmatadas a partir de uma determinada data (FSC – 1993 – e RAS – novembro de 2005). Além disso, exigem a cobertura vegetal natural em beiras de rio e áreas de fragilidade natural e incentivam a proteção, restauração e conexão da biodiversidade na paisagem ou propriedade rural.
Tem-se verificado o papel da certificação para incentivar a implementação do Código Florestal numa grande diversidade de situações geográficas, de escala e perfil de produtores no setor florestal (de plantações e manejo nativo) e agrícola. Os empreendimentos certificados cumprem ou estão em processo de implementação do Código Florestal, com planos, cronogramas, metas e orçamentos destinados para tal, movidos pela engrenagem de benefícios econômicos deste instrumento. O nosso universo de trabalho abrange cerca de 150.000 hectares de 60 fazendas que cultivam café, laranja, cacau, cana-de-açúcar, chá ou frutas concentrados no Cerrado e na Mata Atlântica, mas também presen-tes no bioma Caatinga, entre grandes empreendimentos e grupos de médios produtores e agricultores familiares.
Para a certificação florestal FSC, trabalhamos com 57 das 77 operações de manejo florestal certificadas no Brasil, somando 3,6 milhões de hectares, com uma grande diversidade de tamanho e perfil das operações na Floresta Amazônica, no Cerrado e na Mata Atlântica.
CERTIFICAÇÃO E CÓDIGO FLORESTAL
Apesar das diversas mostras de su-cesso de implementação do atual Código Florestal, a experiência no campo tem nos evidenciado a necessidade do aprimoramento desta legislação. Há situações que de fato dificultam o seu cumprimento por agricultores familiares, assim como faltam instrumentos que incentivem a sua aplicação para produtores empresariais. Nesse sentido, destacamos a proposta oferecida pelo Diálogo Florestal ao Congresso Nacional.
O documento foi consensuado até o momento por 34 ONGs e 30 empresas de base florestal após um processo de negociação que durou oito meses. Primeiramente, o texto representa um enorme avanço na busca da solução de um problema altamente complexo, que é a revisão do Código. O esforço demonstrou que são possíveis o diálogo e a construção de acordos entre a sociedade civil e o setor empresarial e que estes podem oferecer propostas de soluções para o poder público.
A proposta se apoia nos estudos que indicam que o Brasil possui um banco de ativos e passivos florestais em áreas privadas, em que o saldo geral oferece um superávit de área florestal no país em todos os biomas. Em seguida, apresenta uma lógica que busca equilibrar exigências e restrições com incentivos para proteger as florestas (priorizando as mais ameaçadas) e restaurar as áreas essenciais para a conservação do solo, da água e da biodiversidade. Busca inverter a lógica de que hoje a floresta em uma fazenda possa valer mais derrubada do que de pé. Assim, visa combinar o potencial de o Brasil se firmar como uma potência agropecuária e ambiental – sendo um protagonista tanto como provedor de alimentos e energia, como de serviços ambientais para o nosso país e o planeta. Contribui para que possamos cumprir nossos compromissos internacionais de diminuição de gases de efeito estufa.
O texto da proposta do Diálogo Flo-restal detalha 16 pontos de consenso para a revisão do Código, com destaque para os seguintes temas: não à anistia e à moratória do desmatamento; manutenção dos critérios de áreas de preservação permanente de áreas ripárias; e a possibilidade de cultivo de espécies perenes lenhosas em topos de morro e encostas. Deve-se manter os percentuais atuais para as Reservas Legais, mas será possível incorporar as Áreas de Preservação Permanentes (APPs), desde que isso não resulte em liberar áreas para desmatamento. Será possível compensar a Reserva Legal por meio de servidão, cotas e doação para unidades de conservação ainda não regularizadas. Considera que deve haver um Cadastro Ambiental Rural e incentivos econômicos para a efetiva implementação do Código. Os documentos completos da proposta, o posicionamento e a lista de organizações que o subscrevem estão disponíveis em <www.dialogoflorestal.org.br>.
O aumento da governança e a indução de melhorias contínuas na agropecuária brasileira, por meio dos incentivos da certificação socioambiental, têm se mostrado como um mecanismo interessante para catalisar mudanças nesse setor e conduzi-lo rumo à utopia de sua sustentabilidade. Também têm sido importante para a implementação da legislação nacional, como do Código Florestal, assim como para apontar a sua necessidade de aprimoramento. A experiência de criar normas de certificação e aplicá- -las no campo por meio de auditorias deve ter uma intensa integração com a definição de políticas públicas, o ensino e a pesquisa.
No que tange ao Código Florestal, nos perguntamos sobre a origem das divergências quanto a esse assunto, uma vez entendemos que uma lei moderna e que induz à conservação não compromete a expansão da nossa agropecuária e a importância desse setor na nossa economia em escala nacional. Também pode contribuir decisivamente para a sustentabilidade do setor e do uso da terra no Brasil e abrir ainda mais oportunidades para o nosso país. No nosso entender, a questão legítima do setor produtivo é se preocupar em até que ponto um novo Código Florestal pode comprometer a sua competitividade e a renda no campo, uma vez que de fato deve resultar em diminuição da área de produção de cada propriedade individualmente e investimentos para a restauração e a compensação de áreas. Esta nos parece ser a questão central.
Nesse sentido, um Código moderno deve ser entendido como mais um instru-mento importante para o planejamento do uso da terra nacional e do agrone-gócio. Esse deve ser integrado com uma revisão de política econômica e agrícola, que garanta renda ao produtor eficiente, responsável, e que também contribua para a conservação do seu patrimônio particular e público. Revisão da taxa de câmbio, juros, crédito, assistência técnica e extensão rural e instrumentos modernos de pagamento por serviços ambientais serão fundamentais para viabilizar este, que deve ser um projeto nacional. O nosso novo Código Florestal é uma grande oportunidade e devemos usar a experiência da certificação como uma das fontes de debate sobre o tema.
Fonte: Visão Agrícola, por Luís Fernando Guedes Pinto e Maurício Voivodic*