Se você perguntasse mundo afora qual é o maior trunfo científico do Brasil nos dias atuais, possivelmente ouviria “etanol de cana-de-açúcar” como resposta mais freqüente. Mas esse combustível renovável está envolto em tantos e tão acalorados debates que é preciso separar o joio do trigo na hora de analisá-lo.
O ex-ministro da Agricultura, engenheiro agrônomo e coordenador do GV-Agro, Roberto Rodrigues disse: “Há um fluxo de capitais vindo para o Brasil. Mas é preciso haver um novo paradigma agrícola, vencer as tarifas e alterar os subsídios [na Rodada Doha das negociações da Organização Mundial do Comércio em 2007]”.
Um dos mais respeitados especialistas da área do Brasil, Rodrigues fez vários esclarecimentos relevantes ao público da Expo:
Que papel devem ter os biocombustíveis no futuro próximo?
Para o século 21, a perspectiva é que o pacto mundial seja feito em torno da questão energética. “O crescimento da demanda de energia nos próximos 30 anos deve ser de cerca de 50%, e 55% em relação aos combustíveis líquidos. Com isso, o papel dos biocombustíveis é muito importante.” E ele completou: “Com a mudança dos supridores de energia, muda o jogo de forças e a democracia se torna mais sólida, a economia mais bem distribuída”.
O etanol pode representar um diferencial estratégico para o Brasil?
“Sim. Ambientalmente, nem se discute a vantagem dos biocombustíveis. Mas seu impacto vai além: acredito que afetará as questões políticas e a democracia no mundo.” Tampouco se discute o potencial do Brasil nessa área: já usamos 44% de combustíveis renováveis, enquanto o mundo usa 14%, segundo Rodrigues. “O Brasil poderia produzir 15% do combustível consumido no mundo em 15 anos, se usasse toda a terra e toda a tecnologia atual. Isso, sem contar a tecnologia que está por vir, que pode até fazer dobrar esse índice.” Existe a possibilidade de se aumentar em 7,5% a área plantada de cana no Brasil.
Há de fato mercados para o etanol brasileiro?
Ainda é preciso construí-los, na verdade, cuidando para que substituir a dependência do petróleo pela dependência do etanol seja um requisito legal. “Um país como o Japão, por exemplo, que depende do petróleo externo, argumenta que não vê sentido em substituir a dependência dos produtores do petróleo pela dos produtores de etanol.” Por exemplo, no Brasil, o PróÁlcool só foi para frente quando se tornou obrigatória a mistura de 20% de álcool na gasolina.
A cana-de-açúcar é mais competitiva que outras culturas para produção do etanol combustível?
Não há dúvida de que hoje a cana representa a opção de produção de etanol com a melhor relação custo-benefício. “A cana dá em países tropicais, onde há terra, sol, mão-de-obra e água. Mas não será para sempre, necessariamente. Só se tivermos juízo. Grandes consumidores de energia como Estados Unidos, Canadá, Suécia e Austrália não têm essas condições. Temos condições inclusive de vender nosso know-how para países da América Central e Caribe. O GVAgro ganhou uma concorrência mundial para fornecer o projeto técnico ao Banco Interamericano de Desenvolvimento, que está procurando candidatos ao desenvolvimento da cultura da cana”, contou Rodrigues.
A cultura de cana-de-açúcar substituirá áreas destinadas à plantação de alimentos?
Rodrigues negou incisivamente: “Dos 62 milhões de hectares de terras agricultáveis existentes no Brasil, apenas 3,2 milhões, ou 5%, são adequados para a cana. O que existe no Brasil é uma quantidade muito grande de terras usadas para pastagem, 220 milhões de hectares –destes, 90 milhões poderiam ser aproveitados para agricultura, sendo que um quarto serviria para a cana”. Em outras palavras, mesmo com o avanço da cultura da cana, a área destinada ao plantio de grãos pode aumentar 22% –e a produção, com tecnologia, 127%.
Como têm livre arbítrio, será que os produtores, mesmo não precisando, não preferirão substituir plantações de alimentos por cana?
O professor do GV-Agro explicou que o mercado vai se ajustando pela lei de oferta e procura: “É claro que os agricultores sempre buscam as alternativas mais rentáveis. O que orienta suas decisões sobre isso é a expectativa de aumento e queda dos preços vis-à-vis à média de preços histórica de cada cultivo”. Ou seja, hoje, os produtores brasileiros evitam milho e soja, porque estão acima da média histórica. Mas eles não estão substituindo grãos por cana; o crescimento da cana está acontecendo principalmente sobre áreas de pastagens degradadas e, no Estado de São Paulo, também sobre as regiões produtoras de laranja. “Até podemos dizer que cana arrancou laranja, porque o preço da laranja estava baixo. Mas, como a oferta diminuiu, a laranja já começou a ser replantada em outras áreas – inclusive no Paraná, que nunca teve tradição de laranja.”
A cana inviabiliza o solo para outras culturas?
O plantador de cana consegue, sim, utilizar o solo para outra cultura. “É uma falácia antiga dizer que a cana empobrece o solo; diz-se o mesmo do eucalipto e não é verdade. Todo produto agrícola extrai nutrientes do solo e tem de ser usado adubo para repor esses nutrientes. A preservação do solo depende dessa reposição. A cana, na verdade, é uma das culturas que mais deixa material orgânico no solo.”
O risco de desabastecimento de etanol não é elevado, pelo fato de os usineiros, que adquirem a cana dos produtores rurais, poderem dirigi-la ora para produção de açúcar ora para a de álcool, conforme a conveniência de preços?
Rodrigues argumentou que, na verdade, hoje não existe mais um mercado de cana –o produtor não tem proteção, é mero entregador; o usineiro paga o que quer e concentra cada vez mais a produção. “O preço da tonelada é tão baixo que o frete inviabiliza os lucros; então o plantador só pode vender para usinas que estejam até 25 ou 30 quilômetros de distância. É fundamental que se volte a se estabelecer uma regra de paridade entre agricultor e usineiro, controlando as cotas para a produção de açúcar e álcool, como fazia o Instituto do Açúcar do Álcool até ser extinto pelo governo Collor, em 1991.”
Porém o ex-ministro garantiu que essa manipulação dos usineiros, verdadeira no passado, já não é mais tão viável; não existem mais tantas usinas híbridas e a flexibilidade para mudar de um produto para outro é menor. “A maioria das usinas de álcool é só de álcool, o que reduz o risco de desabastecimento.”
Os preços do etanol não são muito instáveis?
Existe, sim, certa ciclotimia dos preços, pelo fato de a safra ser semestral e o comércio, anual. “Já sabemos qual é a solução para isso: a criação de um sistema nacional de estoque, algo feito em conjunto entre Estado e setor privado, para evitar que o consumidor fique na mão da oscilação dos preços.”
Incentivar a cana não significa incentivar as péssimas condições de trabalho dos cortadores de cana, conhecidos como bóias-frias?
Rodrigues afirmou que, pelo menos em São Paulo, há um movimento forte para terminar de vez com o corte de cana manual, que é considerado um trabalho desumano. Mas há outra corrente, liderada pelos próprios trabalhadores, que não quer a mecanização em função do desemprego que seria causado. “Os dois lados têm sua razão e acho que a eliminação tem de ir acontecendo na medida do possível, com modelos de substituição de mão-de-obra.”
Rodrigues contou que está trabalhando com o governo estadual para criar um financiamento para a reciclagem dos trabalhadores e a capacitação para plantio de produtos de alto valor agregado, como frutas, flores, seringueiras e orgânicos.
A cultura da cana não exige que se façam queimadas, o que agride o solo e também emite gases de efeito estufa?
Quanto à emissão de gás carbônico, é uma realidade. “Fazem-se queimadas apenas para a colheita de cana com corte manual –não para plantação–, porque a folha da cana crua tem sílica, que corta os trabalhadores, e para afastar cobras, aranhas e outros animais que possam atacá-los”. Como essa queima é uma prática tradicional, não há alternativa para ela enquanto houver corte manual, por isso, a mecanização é desejável.
Contudo, a queimada não agride tanto o solo quanto se pensava, matando os microorganismos que ajudam a refertilizá- la. Ele próprio fez um estudo medindo a temperatura do solo em queimadas de cana e descobriu que a queima é tão rápida que não chega a mudar a temperatura a ponto de comprometer os microorganismos. “Se a colheita passar a ser mecanizada, de cana crua, será preciso haver uma recomposição tecnológica, no entanto, porque as pragas, doenças e insetos que eram destruídos pelo fogo não o serão mais.”
O Brasil está mesmo pronto para explorar o etanol internacionalmente?
Não. Roberto Rodrigues elencou mais de uma dúzia de questões que ainda precisam ser abordadas para que o Brasil trace sua estratégia de etanol para os próximos anos:
- Quanto o Brasil quer produzir?
- Para qual mercado?
- Sob quais condições?
- Que modelo de produção utilizar?
- Quem cuidará da logística e da infra-estrutura e qual será o pipeline?
- Quem bancará a estocagem?
- Como será feito o zoneamento e financiamento?
- Qual será a tecnologia adotada?
- Qual será o modelo de produção?
- Como será a comunicação do produto?
- Haverá créditos de carbono envolvidos na operação?
- Haverá um selo ambiental?
- Que parcerias poderão ser feitas?
Fonte: Revista HSM Management edição 66