Um dos maiores desafios das organizações em tempos instáveis é incluir a reflexão no dia a dia da operação. O pensador da gestão Jim Collins e o empresário Abílio Diniz mostram como incutir o hábito de pensar em uma empresa, qualquer que seja sua atividade. A filosofia deve ter foco em seus valores centrais e cultivar 3 comportamentos chave.
O que há em comum entre um alpinista e um corredor de longa distância? Aparentemente nada, porque um sobe montanhas com a ajuda de ferramentas e foco nos detalhes do trajeto para chegar ao topo e aí ampliar seus horizontes, enquanto o outro avança em terreno mais ou menos plano mantendo constante o ritmo e evitando paradas para alcançar sua meta em um bom tempo.
Trazida ao mundo dos negócios, porém, a analogia esportiva se mostra perfeita para designar um pesquisador da gestão e um gestor atuante. O estudioso precisa formar uma visão ampla daquilo que acontece, o que ele obtém graças ao caminho percorrido, aos instrumentos e a sua concentração em cada trecho, enquanto o gestor deve garantir um fluxo contínuo para seu negócio, sem interrupções nem surpresas.
Mesmo no sentido metafórico, eles não se aproximariam. Esse distanciamento entre o alpinista e o corredor tem sido uma preocupação cada vez mais frequente na gestão; vozes como a de Rosabeth Moss Kanter, de Harvard, reclamam que um dos maiores problemas das empresas hoje está justamente na ausência de reflexão –e fazer tudo no “piloto automático” parece ser extremamente arriscado, em especial no século 21, na dita “era da learning organization”.
Há pelo menos um caso recente em que dois desses esportistas, reais e metafóricos, aliaram-se de fato, e com grande sucesso. O alpinista atende pelo nome de Jim Collins, que, além de hábil nas escaladas, talvez seja o pesquisador mais respeitado da gestão na atualidade e é autor de livros obrigatórios na área.
O corredor se chama Abilio Diniz, maratonista que é fundador e chairman do Grupo Pão de Açúcar, o maior grupo varejista do Brasil. Leitor antigo da obra de Collins, que depois lhe foi pessoalmente recomendado pelo empresário Jorge Paulo Lemann (da AB InBev), Abilio levou sua equipe de liderança para um workshop intensivo de dois dias com Collins em Boulder, Colorado, em março de 2010 e, oito meses depois, trouxe-o a São Paulo a fim de reverberar o mesmo encontro por mais duas horas entre 400 funcionários do grupo (o que, por sua vez, foi reverberado entre 1,2 mil gerentes de loja e assim por diante).
“Eu já me identificava muito com as ideias do Jim Collins, mas o workshop no Colorado foi especialmente importante para todos nós. Não é que Collins nos tenha trazido tantas novidades assim; o que ele fez foi sublinhar coisas em que acreditávamos e, então, passamos a acreditar muito mais nelas, o que é algo vital para podermos agir”, explicou Abilio a HSM Management. Collins provocou a reflexão dos 11 executivos seniores do Grupo Pão de Açúcar e cumpriu seu papel de apoiar a ação.
Esse alpinista estudioso da gestão e esse corredor empresário, entrevistados pela HSM, podem ajudar o leitor a entender como reflexão e prática se implementam e se reforçam mutuamente em uma organização.
A filosofia em marcha
Quem conhece Jim Collins sabe que ele não aceita qualquer cliente; o estudioso precisa acreditar no negócio em questão. Se isso não acontecer depois de uma ou mais baterias de perguntas, ele pede desculpas gentilmente e abre mão do trabalho. Collins aceitou trabalhar para o Grupo Pão de Açúcar por acreditar nele, até porque se encaixa bem no perfil de empresa “10 vezes mais” (10X, originalmente) que ele descreve em seu novo livro, Vencedoras por opção: incerteza, caos e acaso – por que algumas empresas prosperam apesar de tudo, a ser lançado no Brasil em breve e o único ainda não lido por Abilio Diniz.
Em primeiro lugar, o Pão de Açúcar começou como uma doceira, em 1948, e atualmente tem faturamento de R$ 52,6 bilhões, lucro de R$ 718 milhões (dados de 2011), 1.803 lojas em 18 estados e mais o Distrito Federal, e 149 mil funcionários espalhados pelo Brasil, somando Pão de Açúcar, Extra Hiper, Extra Super, Minimercado Extra, Assaí (atacado), Ponto Frio, Casas Bahia, postos de combustíveis e drogarias.
Como Collins explicou, as ‘10 vezes mais’ são organizações que começaram com três funcionários e se tornaram a Intel; que tinham três aviões e viraram a South west Airlines; que contavam com cinco colaboradores em um sala de Albuquerque e se transformaram na Microsoft. Têm histórias excepcionais, porque enfrentaram tudo; cada uma delas é uma em milhares”.
Em segundo lugar, apesar dos altos e baixos de sua trajetória, o Pão de Açúcar tem, sim, desempenho notável: sua ação, listada em bolsa de valores desde 1995, subiu de um valor médio de R$ 36,36 em 2006 para R$ 79 no dia 17 de fevereiro último. Mais importante ainda, Abilio Diniz está muito mais para o modelo de gestor Roald Amundsen do que para Robert Falcon Scott.
No novo livro, Collins usa como ilustração a história dos dois exploradores que, em 1911, formaram expedições concorrentes para chegar pioneiramente ao polo sul. Enquanto Amundsen estabeleceu um limite de 20 milhas (32 quilômetros) por dia de avanço para manter sua equipe afastada do risco de exaustão, Scott pressionou seu pessoal para chegar primeiro. Resultado: a expedição de Amundsen atingiu o polo sul e a de Scott morreu no caminho.
Em seu estudo, com Morten T. Hansen, de Berkeley, Collins concluiu que os líderes das companhias “10 vezes mais” sempre têm três comportamentos: disciplina fanática, criatividade empírica e paranoia produtiva. Abilio Diniz materializa os três.
Disciplina, criatividade e paranóia produtiva como filosofia.
Jim Collins é um exemplo ambulante de como um enfoque disciplinado e metódico permite enfrentar qualquer desafio. Em uma planilha de cálculo, carrega estatísticas minuciosas sobre o uso de seu tempo – 50% dedicado à criatividade, 30% ao ensino e 20% a outras atividades –, que controla com um cronômetro de bolso.
Mas a disciplina que ele localiza nas empresas “10 vezes mais” é a da “marcha das 20 milhas”, um princípio-chave segundo o qual as metas parciais de um negócio nunca devem ser trocadas pelo afã de chegar mais rápido à meta final ou superá-la. A marcha das 20 milhas é crescer 20% todo ano e não mais, como conseguiu a empresa de equipamentos médicos Stryker. Para Collins, a disciplina é a única maneira de progredir. “Acredito que ser criativo é ser humano, é algo natural a todos nós. O difícil é ser disciplinado, e é isso que diferencia uma pessoa”, afirma.
O esporte é um elemento disciplinador por excelência e, ao estender seu DNA esportista ao grupo, Diniz tornou a disciplina um dos quatro valores de sua cultura. “A inovação é importante, mas não tanto quanto pensamos”, defende Collins. “Cada setor de atividade tem um limiar de inovação.
Em alguns, como o de biotecnologia, é muito maior, mas em outros, como o de aviação comercial, é relativamente baixo. O importante é que cada organização detecte qual é o limiar de inovação necessário. Inovar além desse ponto não leva a resultados excepcionais”, garante o especialista. O leitor diria que o Grupo Pão de Açúcar é inovador? Os consultores especializados em varejo associam esse adjetivo a ele com muita frequência. Afinal, um grupo supermercadista que há anos liga sua imagem à aura “cool” do esporte, em vez de se concentrar nas ofertas de produtos, como é a convenção do setor, não pode não ser considerado inovador.
As causas ambientalistas que a corporação abraçou também contribuem para o posicionamento, assim como os “conselhos de clientes” das lojas, algo que existe desde 1993. Uma pessoa criativa consegue disciplinar-se? “Não disponho de evidência científica, mas acredito que é mais fácil o inverso, ou seja, passar da disciplina para a criatividade, já que a criatividade é o estado natural do ser humano. Quase tudo o que o homem criou desde a Antiguidade nasceu do impulso criativo, mas a grande maioria das pessoas não é disciplinada”, analisa Collins.
Parece que foi exatamente isso que aconteceu com o Grupo Pão de Açúcar. E quanto à paranoia, que, para Collins, é quase um sinônimo de prudência e preparo contra riscos assimétricos? Bem, a movimentação constante de Abilio Diniz parece ser um sintoma dela. “Primeiro, abrimos o capital em 1997. Depois, tomamos a decisão, eu e meus filhos Ana, João e Pedro, de que profissionalizaríamos nossa empresa para perpetuá-la e, fazendo workshops com John Davis entre 2001 e 2002, definimos os movimentos para o futuro nessa direção. Entre 2003 e 2007, começamos a transição”, conta Abilio.
Ana e João, que atuavam lá, retiraram-se, Abilio tornou-se chairman e fizeram-se as duas primeiras tentativas de ter um CEO que não fosse da família –o primeiro era de dentro da empresa (Augusto Cruz) e o outro de fora (Cássio Casseb). “Tivemos muitas dificuldades, mas foi um grande aprendizado. Eu dei uma liberdade imensa para que eles aprendessem com os erros e acertos, e crescessem com isso, e entendi que é preciso ficar mais vigilante”, reflete Abilio.
Não deu certo e, em 2007, o consultor Cláudio Galeazzi assumiu o posto para fazer uma espécie de “transição-turnaround”, com mandato definido em dois anos. “Dessa vez eu avisei: ‘Quando for fazer alguma coisa que seja contrária ao que eu penso, você vai ter de me convencer. Se eu tiver dúvidas, levarei para o conselho, e, se nem ao conselho for persuadido, você não vai fazer.” No início de 2008, Enéas Pestana, que entrara na empresa em 2003 vindo do Carrefour, já era “paranoicamente” escolhido, e preparado, para ser o CEO.
Jobs e Lemann
Abilio Diniz foi um dos palestrantes da HSM ExpoManagement, o megaevento de educação executiva da HSM e, durante sua palestra, algo surpreendente ocorreu. Ele abriu o microfone para a plateia, dispondo-se a responder a qualquer pergunta, e ninguém o questionou sobre um dos assuntos do ano da mídia de negócios brasileira: sua tentativa frustrada de aquisição do Carrefour.
A explicação para o silêncio? Conforme apurou nossa reportagem, traduzia o respeito e o apoio dos gestores a Abilio Diniz e à internacionalização de empresas brasileiras de modo geral, além de sua concordância com a contribuição do governo brasileiro para isso, nos moldes do que faz o governo dos Estados Unidos. Além disso, Abilio Diniz era percebido como um “Steve Jobs brasileiro” e o público o justificou citando as dificuldades pessoais que ele enfrentou –da briga com a família ao sequestro– e a volta por cima, sua paixão pelo negócio e o fato de ele se expor publicamente em nome disso, a ligação com prazer e felicidade que suas lojas buscam promover (a exemplo dos iPads).
À primeira vista, no entanto, Steve Jobs parece estar mais para Scott do que para Amundsen, certo? Não na visão de Collins: “Jobs evoluiu com o tempo. No início, ele realmente era criativo e pouco disciplinado, mas melhorou bastante”. Ele continua: “Quando Jobs voltou para a Apple, em 1997, uma das primeiras coisas que fez foi fortalecer o produto básico da empresa, o Mac. Não pulou para o iPod ou o iPhone; isso surgiu depois. Ele organizou as contas e procurou o melhor pessoal de operações, o que o levou a Tim Cook”.
Como o especialista lembra, Jobs disse a Cook uma frase lapidar: “Não faremos uma grande diferença se formos criativos, mas nossos produtos falharem”. Jobs e Cook personificaram a dupla “criatividade e disciplina”. Outro espelho em que podemos olhar para entender tanto Abilio Diniz como o tipo de gestor que Jim Collins prega é Jorge Paulo Lemann, da AB Inbev.
Trata-se de um cliente ao qual Collins é bastante ligado e também de um amigo pessoal de Abilio. “O Jorge tem uma trajetória muito parecida com a minha. Ele juntou Brahma e Antarctica na Ambev, como as aquisições que nós fizemos. Depois, ele internacionalizou-se; se vou me internacionalizar ou não, vai depender de como fica o mundo. O Jorge é um dos empresários que eu mais admiro e de quem tenho a honra de ser amigo”, conta.
Abilio Diniz não quis comentar o episódio Carrefour-Casino-BNDES nessa entrevista. A esse res peito, apenas declarou: “Eu e meu sócio Jean-Charles [Naouri, presidente do grupo francês Casino] estamos bem, buscando soluções e confirmando aquilo que eu sempre falo: empresários não brigam; briga é para namorados”.
Pessoas certas nos lugares certos
Abilio Diniz não poupa elogios a seu CEO, Enéas Pestana. “Ele se preparou durante dois anos para ser o CEO, profissional e pessoalmente. Fez coaching, avaliações, trabalhou a si mesmo em terapia, buscou cada vez mais o autoconhecimento, e é hoje um dos dois grandes exemplos que tenho para mim de pessoa que cresceu extraordinariamente –o outro é o presidente Lula.
Graças a isso, hoje o Enéas lida com as outras pessoas do time de uma forma fantástica”, diz o empresário. Não apenas Pestana, mas todo o atual time da alta gerência do Grupo Pão de Açúcar é de primeira linha, segundo Abilio. “Temos um Pelé em cada posição –logística, TI, estratégia, operação, comercial”, diz ele, orgulhoso. “Jim Collins nos recomendou que pelo menos 95% dos cargos-chave da empresa tivessem as pessoas certas e fizemos trocas tão radicais quanto colocar a executiva de RH em estratégia”, lembra o líder do Grupo Pão de Açúcar.
Para ter as pessoas certas nos lugares certos continuamente, é preciso, contudo, ser capaz de atraí-las e o Grupo Pão de Açúcar entendeu bem isso. Seu programa de trainees era concorrido –começava com 30 mil inscrições e terminava com 50 selecionados – , porém os candidatos priorizavam o trabalho na administração central, não nas lojas. “Mas, do programa de 2012 em diante, esperamos atrair muitos desses talentos para as lojas.”
O grupo tem tomado medidas muito concretas para ampliar sua atratividade. “Eu digo que 2011 foi o ano dos nossos colaboradores. Reorganizamos a comunicação para que as bases sintam nossa preocupação com sua felicidade; fizemos uma manobra estatística para que as gerências de loja passassem a tirar, no mínimo, dois fins de semana de folga por mês, o que é um enorme avanço para quem trabalha no varejo; criamos o cartão da mãe, que é um auxílio-babá, entre outras coisas”, comenta Abilio.
Reflexão como hábito
Para Jim Collins, o diferencial de empresas como suas “10 vezes mais” ou o Grupo Pão de Açúcar pode ser resumido em “saber navegar no caos”. “Durante a segunda metade do século 20, muitos de nós (norte-americanos) nos acostumamos com a falsa ideia de segurança e a retransmitimos, mas o fato é que sempre vivemos e viveremos na instabilidade e as empresas que lidam com isso têm vantagens.”
E o que a instabilidade exige? Um aprender constante, o que, por sua vez, requer reflexão. É injusto dizer que o Grupo Pão de Açúcar incorporou a reflexão em seu DNA apenas depois de Collins e outros gurus; trata-se de um processo de anos –a sala compartilhada da alta gerência vem do final dos anos 1990, a plenária das segundas-feiras de manhã com 400 pessoas que representam as 149 mil também é prata da casa.
Porém o hábito da reflexão talvez tenha ficado mais sistematizado no grupo sob a influência de Collins e outros pensadores. A reflexão dentro da ação talvez equivalha à palavra “diagnóstico”, muito usada por Abilio Diniz e que significa fazer todo tipo de pergunta antes de tomar decisões.
Jim Collins é famoso por gostar de perguntas também; ele as formula visando a coerência dos valores corporativos. Como Collins resumiu: “O poeta T.S. Eliot já disse que ‘o fim de toda exploração nossa será chegar aonde começamos e conhecer o lugar pela primeira vez’. Creio que as verdades que descobrimos há muito tempo às vezes desaparecem de nossa vista e necessitamos voltar a elas frequentemente –em especial, quando tudo a nosso redor muda tanto”. Ou seja, essa tão urgente aliança entre reflexão e prática pode ser adquirida, sim, como recomenda Jim Collins e como comprova o Grupo Pão de Açúcar. Com ou sem parcerias externas.
Fonte: Revista HSM Management