Todos podemos ser resilientes

Como na fábula da lebre e da tartaruga, o segredo para vencer a corrida dos negócios pode não estar nas qualidades evidentes, mas na resiliência, a capacidade de se adaptar sem perder a essência, diz o especialista em estratégia Gary Hamel

Muito se fala das rápidas mudanças no mundo dos negócios, do poder crescente os clientes, da concorrência com os custos extremamente baixos da Ásia, da distribuição em tempo real. Mas o certo é que o que está mudando com a maior velocidade é a própria mudança.

Hoje a mudança tem características próprias: é perigosa, traiçoeira, imprevisível e sempre surpreendente. Possui alcance, nível de turbulência e aceleração nunca vistos. E o mais atemorizante para os “privilegiados” que vivemos nesta época: atualmente a mudança é hipercrítica. A evolução geológica é medida em bilhões de anos. A evolução do ser humano, em milhões de anos. As mudanças culturais, em gerações. O ritmo vertiginoso da mudança tecnológica somente é superado pelo do conhecimento: cerca de 12% do que sabemos hoje surgiu nos últimos cinco anos.

Esse ritmo, que não parece estar desacelerando, disparou há 150 anos. Se alguém observar o crescimento do produto bruto per capita durante o último milênio, verá que, durante os primeiros 850 anos, manteve-se constante e então deu um salto considerável.

O que ocorreu? Nós nos conectamos. Apareceram então o barco a vapor, a ferrovia, o telégrafo, o telefone, o automóvel, o avião, a Internet. Esse foi o primeiro fator acelerador. O segundo foi o poder de processamento dos computadores.

Em 1946, o primeiro computador digital do mundo podia fazer 14 operações por segundo. Hoje, um computador de última geração é capaz de processar 360 trilhões de operações. Não existe nada em 30 bilhões de anos que se tenha movido nesse ritmo.

Tudo o que existe tem essa dinâmica e é, além disso, uma consequência de segunda ou terceira ordem desses fatores. Sua empresa está caminhando na mesma velocidade? Seguramente não, como a maioria das organizações, mesmo algumas das melhores.

A resposta: RESILIÊNCIA

Para enfrentar esse ritmo da mudança, é preciso passar por uma dolorosa metamorfose. À medida que o conhecimento se expande, todos nós ficamos mais ignorantes minuto a minuto. Se não modificarmos nossas prioridades, não conseguiremos continuar relevantes. Já não basta sermos eficazes.

O presidente da Samsung resumiu bem a situação ao afirmar que, “em qualquer setor que se analise, fica claro que o ganhador ainda não está definido”. Segundo esse critério, o sucesso não é somente um alvo temporário em uma batalha sem fim por se manter em destaque.

As organizações têm de passar por transformações mais profundas e radicais. Muitas empresas acreditam que mudar significa adotar alguma inovação tecnológica, iniciar outra rodada de reestruturação, reciclar os produtos ou mexer no sistema de definição de preços. Não vêem a necessidade de ir mais além e tocar em vetores tão determinantes como os princípios e valores sobre os quais estão construídas. Por isso, a mudança profunda se torna difícil: a maioria não tem experiência, só sente a crise como o fator desencadeante de grandes mudanças.

Na IBM, por exemplo, foi preciso uma queda de faturamento de US$ 14 bilhões em três anos para que a direção entendesse, já na década de 1990, que não vendia apenas produtos; vendia serviços. Esse é um dos dois tipos de história de sucesso que abundam na literatura de administração; o outro é o das empresas que fazem mudanças progressivas, ainda que marginais.

No entanto, uma virada como a da IBM não é um caso de sucesso, a meu ver: é uma transformação tragicamente demorada, que constitui um atestado da falta de capacidade estratégica de se renovar. Um atestado da falta de resiliência [resiliência entendida como a capacidade de se adaptar a situações extremas de forma rápida e sem alterações essenciais na empresa].

Também não é um gênio o presidente heroico que lidera a empresa no processo de virada, tampouco se trata de uma lição de administração de alto nível. Sem dúvida, é preciso pensar de maneira diferente. Com demasiada frequência, a mudança é uma manifestação espasmódica.

Na verdade, deve ser uma capacidade intrínseca, permanente, incentivada pela oportunidade, integrada à identidade da empresa. Não é um atributo do presidente. É inaceitável manter a capacidade de uma organização refém da capacidade, ou incapacidade, de seus líderes.

Nos Estados Unidos, por exemplo, as condições para mudar e a flexibilidade fazem parte da própria trama que deu origem ao país. Alguém já disse que a magia estava na Constituição, que os Estados Unidos haviam sido concebidos por gênios para que pudessem ser administrados por idiotas. Nas empresas, essa equação parece inverter-se.

Como se somente pudessem administrá-las com sucesso alguns poucos “iluminados” –humildes, porém com algo de tiranos; donos da verdade, mas abertos ao aprendizado. Não é ruim querer ter os melhores líderes, mas é péssimo buscar um para que “alivie” o barco que está afundando.

Ainda que com demasiada frequência nos rendamos à ideia de que é possível um grande líder levar adiante as grandes transformações, os comandantes espetaculares, inacreditáveis e atrevidos não são necessários –e, muitas vezes, são contraproducentes. Está demonstrado que, quanto mais concentrado é o poder político, menos o sistema é resiliente.

A regra de ouro: verificar até que ponto a organização depende da capacidade de uma ou duas pessoas “iluminadas”, que “vêem” o futuro, e nunca abdicar de nossa responsabilidade de sermos, diariamente, agentes de mudança.

A receita: aumentar o numerador, reduzir o denominador

Nas academias esportivas, ninguém interrompe os exercícios para respirar. Mais ou menos acelerada, porém natural, a respiração “acompanha” as pessoas automaticamente. Da mesma forma, na falta de luz, as pupilas de nossos olhos se dilatam. São atos reflexos, absolutamente espontâneos.

A mudança profunda nas empresas deve funcionar exatamente assim, como o sistema nervoso autônomo do corpo humano, e a resiliência deve ser o indicador de seu bom andamento. No numerador, aparecem a velocidade e a profundidade da transformação estratégica. No denominador, o tempo, o custo e a energia emocional necessários para levá-la a cabo. Como se faz para ser tão eficiente em matéria de renovação como se é na entrega de produtos e serviços?

É preciso fazer crescer o numerador e, ao mesmo tempo, reduzir o denominador. Entrar no ciclo de renovação da concorrência é uma tática que ajuda a chegar lá. Quem utiliza esse expediente são os exércitos. Se sabe como o inimigo pensa, um comandante pode gerar opções mais rapidamente, reorganizar suas tropas de forma mais eficaz e, assim, manter o outro lado sempre na defensiva, sem outra alternativa a não ser a reação.

Os desafios: quatro decisões

São quatro os desafios fundamentais enfrentados por qualquer organização que pretende ser resiliente.

O primeiro parece um jogo de palavras: “Todo negócio é bem-sucedido até que não seja mais”. Muitas empresas vivem o fracasso como uma surpresa quando, na realidade, caíram na tentação de ver o mundo como gostariam que fosse, e não como é. Quanto mais tempo se nega a realidade, mais cara, dolorosa e essencial é a transformação. Conclusão: o que a empresa sabe ou acredita saber de seu setor não passa de uma hipótese aberta à confirmação, incluindo as condições para o sucesso. Logo, todas as estratégias são temporárias.

O segundo desafio é livrar-se dos que “filtram” a realidade: os censores, os cortesãos, os burocratas que, geralmente, em defesa própria, “protegem” o presidente da empresa em relação à verdade e procuram demonstrar que está tudo sob controle. Um governo paralelo ajuda a lidar com esse “séquito”. E o melhor é que seja, em média, 20 anos mais jovem que a diretoria executiva, para não ter uma história a defender e para investir no futuro.

Terceiro desafio: é útil “mover o horizonte” mais para a frente. Alguém já disse que o futuro já passou; apenas está desigualmente distribuído. Muito frequentemente, nas grandes organizações, os líderes estão tão distantes da vanguarda da tecnologia, do estilo de vida e da intelectualidade que não entendem o que realmente está acontecendo.

Um bom líder deve ficar cinco dias por ano com sua equipe em algum lugar onde tenha a oportunidade de ser surpreendido pela mudança, para evitar ser surpreendido pela morte da estratégia. Estratégias corporativas morrem por imitação, esgotamento, retornos decrescentes, saturação do mercado. Morrem porque são suplantadas por um novo modelo de negócio –e, cada vez mais, pelo aumento do poder dos clientes. Se quiser evitar o cadafalso, desenhe um gráfico de controle dos sinais de deterioração para fazer um acompanhamento dinâmico das estratégias que estão perdendo potência.

Finalmente, o quarto desafio: multiplicar as opções. Vivemos em um mundo no qual o retorno das melhorias incrementais diminui, comparado com o retorno da inovação. Por isso, a inovação é uma das três prioridades máximas “declaradas” pelos presidentes de empresa, ainda que, quando alguém pergunta à média gerência se foi capacitada para ser inovadora, a única resposta obtida seja um olhar inexpressivo, que diz tudo. Isso acontece porque muitos inovadores “declarados” seguem acreditando que suas receitas de sempre –disciplina, foco, execução – são virtudes mais que suficientes para nosso mundo. Estão errados.

Mais idéias radicais

A menos que tenha o poder de mudar drasticamente as expectativas dos clientes, as bases da vantagem competitiva ou a lógica econômica de um setor, a inovação não terá real impacto, ou seja, não será radical. Assim, para ampliar as possibilidades de sucesso, deve-se aumentar a quantidade de ideias radicais” que a organização é capaz de gerar. Como? Em primeiro lugar, é necessário “destruir” as ortodoxias do setor.

Durante muito tempo, os especialistas e os executivos das companhias aéreas consideravam um centro de operações em um aeroporto e os programas de milhagem dois fatores-chave para a lucratividade –até que chegou alguém e alterou as regras do jogo. É preciso aprender a aproveitar a força renovadora dessas centenas de pequenas mudanças que os demais não vêem e não deixar cristalizar as habilidades da empresa naquilo que é atualmente, mas sim recombiná-las e levá-las a novas alturas.

A Swatch fez isso: incorporou o design da Itália e a experiência no uso do plástico da Lego à tecnologia suíça e revolucionou o setor relojoeiro ao tornar realidade as verdadeiras necessidades não articuladas de seus clientes potenciais. Radical não significa arriscado. O risco é uma função de incerteza multiplicada pelo investimento. Quem associou rodas e malas não investiu muito, mas, sem dúvida, inovou. A inovação radical também não é sinônimo de trabalho de especialistas.

Há 30 ou 40 anos, os donos da qualidade eram os inspetores no fim da linha de montagem ou os artesãos da Hermès ou da Gucci, até W.E. Deming pensar que era possível e lucrativo a qualidade ser uma preocupação de todos –como é hoje a inovação. Muitos dirão que essa é uma responsabilidade da área de novos negócios, ou da pesquisa e desenvolvimento, ou de algum louco que impulsionou sua ideia por toda a organização até conseguir levá-la a cabo. O desafio é mobilizar e “monetarizar” a imaginação de cada funcionário. Por último, um “osso duro de roer”: o dilema político da alocação de recursos.

Há interesses já estabelecidos. Quem cede recursos para novas oportunidades sente que perde poder. Por sua vez, ninguém reconhece que tem em suas fileiras gente ou tempo ociosos que poderiam mais bem aproveitados. Além disso, na maioria das empresas, prevalece o pensamento de que existe apenas um comprador a quem se pode vender a inovação: aquele que ocupa o ponto mais alto da cadeia de comando. Se o chefe não estiver interessado, a idéia morre. Não poderia haver engano maior.

Basta ver o exemplo da W.L. Gore, onde são os colegas que dão impulso ao inovador. Não são muitas as empresas que se dispõem a seguir esse modelo e se atrevem a deixar que o talento individual ou coletivo da empresa se libere e inove.


Fonte: Revista HSM Management, por Gary Hamel