Peter Drucker, apenas um “velho jornalista”

Nesse artigo emocionante e saudoso, José Salibi Neto conta o que aprendeu com Peter Drucker, quando ele não era “apenas um velho jornalista”.

No início de 2006, a revista HSM Management presenteou seus leitores com a edição 54. Considerada uma das melhores edições da revista HSM de todos os tempos, essa edição trouxe 21 páginas de entrevistas e artigos sobre administração que abordaram ninguém menos que PETER DRUCKER, o guru da administração moderna.

Se a administração de marketing tem Philip Kotler como seu pai, Peter Drucker assume a paternidade da administração e alta gerência. Seu primeiro livro foi publicado em 1939.

Para facilitar a navegação pelo conteúdo que a HSM disponibilizou aos seus leitores, nesse site vamos dividir as 21 páginas em 4 artigos.

Abaixo voce confere o artigo inicial Apenas um velho jornalista

Os outros três artigos podem ser acessados nos links abaixo:

Nós conferimos especial agradecimento aos jornalistas e profissionais da imprensa que permitiram que esses artigos incríveis pudessem ser disponibilizados para leitores no Brasil. Ao final de cada artigo, são exibidos os créditos de seus autores.


Apenas um velho jornalista

Peter e Doris formaram o casal mais bonito que conheci. Os dois viviam sozinhos, em uma casa de classe média, em um bairro de classe média, na cidade de Claremont, na Costa Oeste dos Estados Unidos. Sem empregada, Doris, aos 94 anos, e Peter, aos 95, faziam jornada dupla: cuidavam da casa e trabalhavam.

Peter datilografava em sua máquina de escrever o dia inteiro, recebia alunos e clientes aos quais dava consultoria, comunicava-se com as pessoas por fax –ele não gostava de usar computador; a luz da tela o incomodava.

Doris, física de formação, desenvolvia suas invenções, todas patenteadas. Tratavam-se com um carinho e respeito invejáveis e até surpreendentes, visto que estavam casados fazia quase sete décadas. Os quatro filhos e os seis netos os visitavam com constância, assim como os amigos.

Eu tive a honra de ser um desses amigos. Minha amizade com os dois começou quando ele tinha 81 anos; ela, 80; e eu, 31. Havia tempo queríamos trazer Peter para uma palestra no Brasil, mas Doris estava muito doente, e ele não viajaria sem ela.

Graças a Deus, Doris melhorou, Peter aceitou o convite e veio o pedido: “Gostaríamos de aproveitar a viagem para conhecer as cataratas de Foz do Iguaçu e as Missões Jesuíticas no Paraguai”. Eu lhes preparei o melhor roteiro que consegui e eles gentilmente me convidaram a acompanhá-los. Fomos eu ao volante, Peter ao meu lado, Doris no banco de trás.

Peter passou os sete dias de viagem deslumbrado com as atrações turísticas. Eu passei os sete dias deslumbrado com Peter. Fiquei tentando entender quem era aquele homem que subia e descia as escadas do Parque do Iguaçu como se tivesse 40 anos menos e, principalmente, que conhecia tão profundamente a história das missões paraguaias que um padre jesuíta lhe perguntou se também ele era jesuíta.

Na verdade, acho que passei todos os 15 anos de nosso convívio tentando entender Peter. Como era possível ter tamanha quantidade de conhecimento sobre tudo? Note que eu nunca vi muitos livros em sua casa e mesmo as revistas de negócios eram incomuns. Note ainda que ele, que analisava a tecnologia como ninguém, usava fax e máquina de escrever.

Hoje talvez tenha decifrado o fenômeno: Peter era um iluminado. É claro que tinha uma formação inicial muito abrangente e sólida. É claro que possuía uma metodologia de aquisição de conhecimento extremamente eficaz, ao dedicar-se, cada dois anos, a aprofundar-se em um tema específico.

É claro que aprendia continuamente, por ser sobretudo um “fazedor de perguntas”. É claro que teve a vantagem de conviver com algumas das pessoas mais interessantes do planeta, de Sigmund Freud a Akio Morita. Mas era um iluminado.

Digo isso, porque a questão não era o conhecimento que armazenava, mas como ele o aplicava e o transformava. Peter estudava para viver, mas não estudava para escrever. Sua criação era de dentro para fora, como acontece com os grandes artistas.

Não à toa foi um pensador originalíssimo, one of a kind. Não à toa enxergava o processo inteiro, não apenas uma ou outra função. E observe que, nesse caso, quando falo em processo, não me refiro apenas à empresa vista globalmente, mas ao mundo, à economia, à sociedade.

Assim, Peter conseguiu ser pioneiro em dezenas de áreas distintas. Assim, foi um dos responsáveis pelo sucesso da General Electric de Jack Welch, pelo milagre japonês dos anos 70 e 80 e muito provavelmente pelo atual milagre chinês (Ozires Silva me revelou que, 20 anos atrás, o governo da China convidou Peter a fazer um planejamento de longo prazo para as empresas daquele país).

Mas eu não quero falar da obra de Peter aqui. Ela é tão imprescindível que todo mundo a está revirando do avesso neste momento, inclusive nós, tanto nesta revista como na HSM Management Update [HMU nº 26, disponível para os assinantes em www.hsmmanagement. com.br]. Quero dar um depoimento de como Peter era um ser humano diferenciado.

Quando deixou a New York University, podia escolher qualquer universidade que quisesse, mas preferiu ser o professor de uma pequena faculdade da Califórnia, para poder fazer as coisas do seu jeito. Criou uma fundação para o aperfeiçoamento da gestão de organizações sem fins lucrativos, que considerava essenciais para nosso futuro, mas fez questão de tirar seu nome dela antes de morrer, pois não poderia mais endossar seus caminhos (agora a Peter F. Drucker Foundation se chama Leader-to-Leader Institute). E Peter dedicava-se a entender a família dele e a de Doris tanto quanto a entender o mundo.

Uma coisa que eu descobri é que, para conhecer Peter Drucker, também é preciso conhecer Doris Drucker. Ela tem um humor insuperável. Certa vez, contou-me, rindo, que, quando se inscreveu em um campeonato de tênis para mulheres na faixa de 80 anos, descobriu que era a única competidora.

Se lhe perguntavam como era ser casada com um grande homem como Peter, respondia: “Perguntem a ele como é ser casado com uma mulher incrível como eu”. Certa vez em um de nossos almoços, atrasamo-nos para sentar à mesa, porque Peter entrava em transe quando começava a falar de management e Doris não teve dúvidas: depois de meia hora, entrou na sala e disse “Tem sanduíche para vocês na geladeira, estou saindo, bye”.

Agora vou revelar algo que será particularmente caro aos leitores: Peter adorava o Brasil. Conhecia nosso País de norte a sul, entendia o português –embora não o falasse– e tinha realmente esperança de que nossos problemas fossem solucionados. Pelo que sei, de suas três últimas viagens internacionais, duas foram para o Brasil, em 1981 e 1984.

Bem, Peter nos deixou em 11 de novembro de 2005, sete dias antes de completar 96 anos. Tomei coragem para telefonar a Doris só no dia 16. Ela não estava atendendo telefonemas, segundo a filha, mas fez questão de me atender, o que me deixou profundamente tocado. Contou que Peter se foi em sua cama, cercado da família, com muita paz. Creio que foi melhor assim. Para Peter, viver era escrever e ele começava a ter dificuldades para escrever.

O que posso dizer é que Peter me fez repensar o que é a vida. Quando nos tornamos amigos, ele era um pensador muito respeitado, mas ainda não estava no ápice. Chegou lá depois dos 80 anos e sempre dizia que seu melhor livro seria o próximo.

Modesto, gostava de se definir como “apenas um velho jornalista”, mesmo no auge. Com ele e Doris também aprendi o significado do amor eterno e da amizade incondicional. Não mais escutarei a voz do meu amigo nem receberei seus faxes. Mas suas palavras ficarão comigo para sempre. Ficarão com todos nós do mundo das empresas.


Fonte: Revista HSM Management – artigo escrito por José Salibi Neto