A base da pirâmide

“O conhecimento é a nova base da riqueza”, garante o economista Lester Thurow, do Massachusetts Institute of Technology (MIT). Mas a transformação desse conhecimento em riqueza não é automática.

Nessa entrevista, Thurow diz que a melhor imagem para refletir o processo de construção da riqueza é uma pirâmide simbólica para cujo vértice convergem diferentes fatores determinantes. E, como nas tumbas dos faraós, são os túneis secretos que levam aos tesouros escondidos.

Para Thurow, embora o ambiente social seja o ponto de partida determinante, o conhecimento, a criatividade e o capital são as ferramentas para descobrilo. Sem dúvida, o importante é procurar, e encontrar, uma riqueza “comercializável”, sempre em um ambiente globalizado, em que os grandes e os pequenos –países, empresas e indivíduos– têm de aprender a viver segundo as novas regras.

O mundo está mergulhado numa profunda transformação histórica, cujos traços o especialista destaca a seguir.

Em virtude das novas regras vigentes, para onde vai, em sua opinião, a economia mundial?

Depende de nós. O conjunto de opções que se abrem diante de nós, como seres humanos, nos impõe decidir como usar essa economia baseada no conhecimento para avançar em direção ao futuro. Na realidade, acredito que nos movemos em muitas direções diferentes.

A biotecnologia está mudando as características das diferentes manifestações de vida. Já não há por que aceitar as doenças genéticas; podemos modificar plantas e animais segundo a necessidade.

A Internet acelera o fluxo das informações, graças a materiais como a fibra óptica, e modifica a maneira pela qual as pessoas se relacionam com produtos, serviços e outras pessoas. A microeletrônica confere mais poder não somente ao setor de telecomunicações, mas também à ciência médica, à robótica e à computação.

E como ficam as empresas?

Diante dessa multiplicidade de possibilidades, não é fácil determinar onde estará o sucesso futuro. A AT&T é um bom exemplo dessa incerteza. Quando nasceu a Lucent, a nova empresa em que se transformaram seus laboratórios de pesquisa por decisão própria, o presidente da “velha” AT&T teve a possibilidade de escolher qual das duas manter sob sua responsabilidade. Cedeu a Lucent e se enganou.

Hoje é a mais rentável e tem uma capitalização no mercado maior do que a nova AT&T, que ele preferiu dirigir. O caso também serve para ilustrar outra das verdades desta nova era: não existem valores (nem lucros) estáveis.

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A AT&T conseguiu alcançar a Lucent, embora graças a uma série de medidas drásticas, desde a venda de uma de suas principais divisões até a terceirização de seu sistema de computação, passando pela fusão com a British Telecom nas operações internacionais. Sem dúvida, é preciso acostumar-se a operar sem pontos de equilíbrio para fundamentar os planos estratégicos. Um quadro difícil para se criar riqueza, no qual a abordagem de tentativa e erro imposta pela instabilidade permanente pode sofrer o golpe de cataclismos inesperados, como a crise asiática de 1997.

Levando em conta esse panorama, como as empresas fazem para gerar riqueza “comercializável” a partir do conhecimento?

Como fez Bill Gates, o homem mais rico do mundo. (Na época dessa entrevista o CEO da Microsoft era o homem mais rico do mundo, posto que não ocupa mais). Ele é o símbolo desta era. Não é dono de minas de ouro, não tem poços de petróleo, fábricas ou máquinas.

O que ele faz é controlar um processo de aplicação do conhecimento. Por isso, para forjar uma fortuna pessoal ou para construir um país rico, na nova economia, o segredo está em encontrar a forma de fazer com que o conhecimento gere lucro.

O sr. acredita que, no próximo milênio, mudarão também os padrões para medir a importância do conhecimento?

De fato, o conhecimento só é relevante do ponto de vista econômico, quando pode ser transformado em dinheiro. Existe uma série de frações isoladas de conhecimento que são muito interessantes mas absolutamente irrelevantes, porque não constituem “conhecimento econômico”. O conhecimento econômico é aquele que se pode transformar em riqueza no sentido convencional, ou seja, dinheiro para gastar.

E quem serão os “proprietários” desse conhecimento: os indivíduos, as empresas ou as nações?

Em matéria de conhecimento, propriedade é sinônimo de controle. Quem pode controlar o conhecimento? Indivíduos, empresas e nações. Cada um joga de maneira diferente. Os países, por exemplo, estão perdendo muito poder depois da globalização resultante dessa economia do conhecimento. Daí que, se desejam conservar um lugar no jogo da nova economia, os governos têm três tarefas. Em primeiro lugar, devem garantir que toda a população tenha acesso a uma boa educação. Em segundo lugar, devem dotar o país de infra-estrutura. Por último, se pretendem desempenhar um papel preponderante, devem garantir o financiamento público necessário para suas atividades de pesquisa e desenvolvimento.

É fácil adequar as regras do capitalismo a esse novo cenário? Ou será que deveriam mudar totalmente?

Acredito que as regras não precisem mudar inteiramente. O principal problema é o fato de hoje a propriedade intelectual, peça-chave nesse esquema, não estar legalmente amparada como deveria. Se o que gera riqueza é o conhecimento, é crucial protegê-lo devidamente. Um grande número de países não respeita as patentes nem os direitos autorais. Uma situação parecida com a que ocorreu no início da Revolução Industrial, quando na Europa não se sabia quem eram os donos da terra, até então uma propriedade coletiva. Foi preciso demarcá-la e estabelecer regras e os limites do domínio, processo que agora se aplica ao conhecimento. Será preciso redefinir as regulamentações sobre a propriedade nessa economia do conhecimento, decididamente global e basicamente sem regras.

Apesar disso, o sr. fala de um decálogo ampliado de regras.

São 13 as regras que visam abranger os principais aspectos dessa nova realidade. Por exemplo, é fato que ninguém se tornou rico economizando. Para ser bem-sucedido, é preciso estar disposto a destruir o velho, embora seja rentável, para que o novo floresça. Outra regra: quando o crescimento é rápido e as margens altas, é preciso aproveitar os desequilíbrios tecnológicos, explorar as diferenças de desenvolvimento; tudo o mais são negócios de commodities, de crescimento lento e baixo índice de retorno. Essas são algumas normas que não fazem mais do que refletir o que se vê na realidade econômica do dia-a-dia.

A vigência de regras como essas provocará mudanças na distribuição da riqueza?

O mais provável é que tanto o lucro como a riqueza sejam distribuídos menos equitativamente, trate-se de pessoas, países ou empresas. A Revolução Industrial levounos do trabalho agrícola, com salários baixos e rendas desiguais, para as fábricas, onde, embora exista uma lacuna entre o presidente e o funcionário de menor salário, é muito menor do que a que se observa no setor de serviços, destino dessa revolução do conhecimento. Por outro lado, no segundo nível, a globalização faz com que não haja lugar para as empresas médias nacionais entre as grandes empresas globais e os pequenos especialistas em nichos. E os países, no terceiro nível, deixaram de objetivar a convergência, como na década de 1970, para se diferenciar cada vez mais ostensivamente. A divergência é crescente: enquanto nos países da África Central a renda per capita cai, em outros, como nos Estados Unidos, ela cresce. A economia dos anos 90, em vez de nivelar para cima, está gerando essa divergência maior. A economia do conhecimento nos conduz a um mundo com mais desigualdade.

Como, em sua opinião, os governos dos países menos favorecidos no fluxo e no controle do conhecimento poderiam evitar isso?

A resposta é simples: se não colocarem em funcionamento um bom sistema educacional, não conseguirão atuar; disso dependem suas chances. Nem todos os países do mundo poderão participar da economia global; os que não tiverem um bom nível de educação ou infra-estrutura adequada serão alijados. Insisto: quem não puder gerenciar com sucesso um bom sistema educacional não poderá construir nada. Lamentavelmente, essa situação é comum nos países mais pobres do mundo. Da mesma forma, eles não conseguem administrar hospitais, nem organizar sua polícia, nem consertar estradas, nem construir pontes. Essas funções sociais constituem a base da pirâmide da riqueza. São as mais importantes –sem elas, nada é possível. A responsabilidade política é enorme.

Quais são os fatores que tornam possível uma cultura geradora de riqueza e quais são os que a impedem?

É preciso estar na vanguarda da revolução tecnológica. Para as empresas tradicionais, fica muito difícil ser líder em uma tecnologia revolucionária, quase sempre em desequilíbrio, mesmo que possam aprimorar tecnologias maduras a um ritmo de 1% ou 5%. Ao mesmo tempo, devem tomar a dianteira na aplicação dessas tecnologias para criar riqueza. As novas empresas que se dedicam ao comércio eletrônico demonstram isso. Cumprindo esses dois requisitos, alcançaram um valor de mercado que supera o de empresas “clássicas”, como a American Airlines.

Segundo outra de suas regras, a sorte é mais um fator no processo de criação da riqueza. Em que sentido?

Basta observar qualquer uma das pessoas que fizeram fortunas de bilhões de dólares ou a nova leva de empresas de sucesso. Por exemplo, a Microsoft teve sorte quando começou; a IBM estava envolvida num problema judicial.

E no processo de crescimento das empresas, qual é a importância da sorte?

No início, vale a sorte, depois precisam ter talento para aproveitá-la. Muita gente e muitas empresas tiveram sorte –algumas souberam aproveitá-la; outras, não. Por isso chamo essa regra de “loteria condicionada”. É preciso ter sorte e também capacidade para aproveitá-la.

Como deveria ser a relação de poder entre as empresas e os indivíduos? Partindo do princípio de que estes são titulares de conhecimento, não ficariam numa posição vulnerável na hora de obter uma participação justa da riqueza?

Na realidade, o conceito de riqueza é um tanto dúbio. Uma coisa é certa: o conhecimento está no cérebro dos seres humanos, e estes não são escravos, no sentido de que não são propriedade das empresas. No entanto, essas porções de conhecimento individual, sem dúvida, são tão pequenas que não têm valor por si sós. É preciso somar todas elas para que sejam valiosas. Essa é a tarefa das empresas. Vejamos o exemplo da Microsoft: nenhuma pessoa, individualmente, é tão inteligente nem tão importante quanto todas juntas.

Os especialistas em recursos humanos assinalam que os laços entre o funcionário e a empresa tendem a se afrouxar cada vez mais. O fato de os criadores de riqueza não estarem atados indefinidamente à empresa poderia levar, em sua opinião, a um aumento das pequenas e das microempresas?

Como fenômeno, a proliferação de pequenas empresas não é relevante por si só. O que importa é que esses novos empreendimentos cresçam rapidamente, porque, enquanto forem pequenos, é óbvio que não serão interessantes do ponto de vista econômico. Por definição, se as organizações continuam pequenas, não geram muita riqueza, não pagam salários altos, não fazem pesquisa e desenvolvimento, não exportam. Nos Estados Unidos existe um sem-número de companhias pequenas, e espera-se que muitas delas amadureçam até se transformar em grandes corporações. As empresas já adultas, cedo ou tarde, morrerão, de modo que sempre será preciso haver novas companhias para substituí-las.

O processo de criação de riqueza a partir do conhecimento contribuirá para que se alcance um bem-estar geral mais abrangente?

Com certeza. Ele nos oferece a possibilidade de curar doenças que não podíamos curar antes, melhorar o meio ambiente, desfrutar avanços tecnológicos. Coloca a nossa disposição um leque de possibilidades, dentre as quais temos a liberdade de escolher.

Se a nova economia, embora benéfica, será pouco equitativa, vai ser preciso uma organização supranacional que arbitre a distribuição da riqueza?

Parece pouco provável que venhamos a ter um “governo global” no futuro imediato, seja ele necessário ou não. Portanto, durante muito tempo não estarão em vigor normas ou regulamentações consensuais, nem autoridades de aplicação ou tribunais aos quais se possa recorrer no caso de se sentir vítima de uma injustiça. Na Europa, comparam o cenário atual ao velho Oeste norte-americano. As disputas econômicas –neste caso, o roubo de gado– eram resolvidas a bala. E, como naquela situação, o capitalismo “caubói” empurra os fracos para fora das terras férteis, das minas de ouro ou das boas pastagens. Sem dúvida, nem todos poderão jogar o jogo global.

A América Latina não parece estar muito longe desse quadro…

É verdade. As grandes companhias globais estão se instalando nos lugares do mundo que lhes dão o que necessitam. Cidadãos instruídos, infra-estrutura, rendas suficientemente altas para que o mercado se mostre interessante na hora de colocar seus produtos. Sem essas condições, as empresas globais não fazem nenhum investimento.

É obrigação dos governos propor políticas fiscais que possam encaminhar o país para a economia do conhecimento?

Os problemas reais têm a ver com a educação. A América Latina está em desvantagem: ainda há uma porcentagem significativa da população sem instrução adequada; algo parecido ocorre com a infra-estrutura. É muito clara a analogia com o corredor de maratona: é preciso se superar a cada ano, constantemente. Os Estados Unidos, a Alemanha e o Japão são as três economias mais fortes do mundo. O que as distingue é que em nove das dez últimas décadas cresceram a uma média de 3% ou 4% ao ano. Cada uma delas, por sua vez, teve um único período de dez anos em que seu desempenho foi fraco: nos Estados Unidos, durante a Grande Depressão da década de 1930; na Alemanha e no Japão, durante a Segunda Guerra Mundial.

Contudo, em nove de cada dez vezes, suas economias andaram muito bem. Na América Latina, por outro lado, os vários países da região tiveram períodos promissores de dez ou 15 anos, depois dos quais, em geral, tudo desmoronou. Foi o que aconteceu com o Brasil depois do rápido crescimento que teve entre 1968 e 1978. O Chile também viveu um processo parecido. A evolução da economia tem de ser consistente. Um ou outro período de vacas magras é aceitável, mas, quando se quer adentrar o mundo desenvolvido, não é possível admitir esses grandes altos e baixos.

Saiba mais sobre Lester Thurow

Lester Thurow, um dos principais economistas da atualidade, publicou recentemente Building Wealth (ed. Harpercollins) e é o autor de O Futuro do Capitalismo e Cabeça a Cabeça (ambos, ed. Rocco), além de The Zero-Sum Society (ed. Penguin). Professor de administração e economia do Massachusetts Institute of Technology (MIT), onde leciona desde 1968, dirigiu a Sloan School of Management entre 1987 e 1993. Polêmico, Thurow tende muitas vezes a um enfoque pessimista em relação à forma atual do capitalismo, ao contrário de outro professor do MIT, Rudiger Dornbusch, que costuma ver grandes oportunidades de crescimento numa economia aberta. A edição número 9 de HSM Management publicou uma entrevista com Thurow, sobre o futuro do capitalismo.

AS NOVAS REGRAS DA ECONOMIA, SEGUNDO LESTER THUROW

Riqueza
Recursos naturais e ambientais O crescimento não é inimigo do ambientalismo. Na verdade, o crescimento é necessário para melhorar o meio ambiente.
Ferramentas O progresso econômico e a riqueza são resultado direto do investimento de capital em fábricas, equipamentos, habitação e infraestrutura.
Habilidades É preciso gente capacitada para descobrir novos conhecimentos, inventar novos produtos e processos e saber como usar essas novidades.
Criação de conhecimento O conhecimento gera inovações revolucionárias em tecnologia, que permitem alcançar índices altos de crescimento econômico.
Espírito empreendedor O espírito empreendedor guia os indivíduos que sejam capazes de reconhecer que é possível fazer coisas novas e que tomem a iniciativa de fazê-las.
Organização social A capacidade de manter a ordem pública, construir ou preservar a infra-estrutura, organizar o sistema escolar e prover serviços de saúde.

Fonte: Revista HSM Management – A entrevista é de Mercedes Reincke.