As novas fronteiras das universidades corporativas

O auge das universidades corporativas, que surgiram nos Estados Unidos nas décadas de 1950 e 1960 e logo se expandiram pelo mundo, já passou? Alguns afirmam que sim e colocam sua eficácia em dúvida. No entanto, elas não deixam de ser exemplos valiosos da evolução –que parece sem volta– das empresas também em instituições de ensino.

O artigo “Is the traditional corporate university dead?”, publicado na Forbes.com em setembro de 2011, Karl Moore se pergunta se as universidades corporativas são um anacronismo neste novo mundo globalizado, onde tanto a tecnologia como os modelos de negócio sofrem transformações constantes. Vale a pena refletir a respeito do formato, mas, ao menos, sua razão de ser original continua absolutamente atual e, na verdade, cada vez mais relevante: é o reconhecimento de grandes líderes empresariais de que capacitar o pessoal é fundamental para a sobrevivência da companhia e importante demais para ser delegado a uma organização externa.

O fato é que as universidades corporativas não passam incólumes pelas mudanças de cenário. Muitas deixaram de existir, outras foram transformadas pelas empresas, e os tipos de mudança são variados. Algumas terceirizaram a formação dos funcionários a plataformas independentes e –essa é a novidade maior– informais, colaborativas e autogeridas. (Diferentemente dos modelos educativos formais, nestas, as pessoas estabelecem um vínculo único com o docente e são protagonistas de seu processo de aprendizado.) Outras fizeram a terceirização formal a empresas de ensino a distância que estão oferecendo novos formatos de universidade corporativa, destinados a obter maior produtividade individual.

E resistem no mercado universidades corporativas tradicionais, mas transformadas. Se no início propunham- se desenvolver as habilidades de seus funcionários, agora, com a chegada do e-learning, ampliaram o alcance para tornar-se uma nova unidade de negócios que oferece cursos a pessoas de fora da empresa.

Plataformas informais colaborativas

www.khanacademy.org

Em agosto de 2004, enquanto trabalhava como analista de fundos de investimento em Boston, o jovem Salman Khan passou a oferecer aulas de apoio de matemática a uma prima que morava em New Orleans. Como os resultados foram positivos, decidiu incorporar seus irmãos e, aos poucos, outros membros da família. Em 2006, o que tinha começado como uma tutoria a distância, basicamente telefônica, assumiu a forma de vídeos que Khan gravava e subia no YouTube aos quais qualquer um podia assistir. Cada vez mais pessoas os viam, e ele continuava fazendo vídeos.

Dois anos depois, fundou a academia que leva seu nome, uma organização sem fins lucrativos que conta com o patrocínio do Google e da Bill & Melinda Gates Foundation, entre outras instituições. Com uma biblioteca de mais de 3,5 mil vídeos educativos de curta duração, que abordam imensa variedade de temas –de matemática e física a finanças e história, além de centenas de habilidades práticas–, essa plataforma educativa pioneira oferece aos usuários de todo o mundo uma educação de alto nível gratuitamente.

Khan, engenheiro de informática formado pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT) e com MBA pela Harvard University, foi eleito pela revista Time uma das cem pessoas mais influentes do mundo em 2012. Ele persegue o objetivo de melhorar o ensino, tornando-o acessível a todos –estudantes, professores, dirigentes ou pessoas que voltaram a estudar depois de muito tempo–, onde quer que estejam, no momento em que desejem e no próprio ritmo.

www.coursera.org

Fundada em abril de 2012 por dois professores da Stanford University, Andrew Ng e Daphne Koller, essa plataforma educativa se define como um empreendimento social. Tem como meta oferecer a qualquer pessoa com acesso à internet cursos acadêmicos online de alto nível de graça, até então disponíveis apenas para uma seleta minoria.

A Coursera parte do conceito de que a educação melhora não só a vida de indivíduos, como a de famílias e comunidades. Baseadas em vídeos de curta duração, segmentados para melhor assimilação, as aulas ajudam o estudante a dominar o material de maneira rápida e eficaz, a aprender no ritmo desejado, a avaliar seu conhecimento e a reforçar os conceitos com exercícios interativos. O feedback frequente, proporcionado pelos professores, e a participação em uma comunidade global de estudantes que aprendem em paralelo são dois fatores-chave da iniciativa.

Os cursos abrangem temas de humanidades, ciências sociais, medicina, biologia, matemática, negócios e informática e são oferecidos por professores de prestígio de mais de 30 universidades norte-americanas (entre elas as de Princeton, Michigan e Pensilvânia), o que distingue a proposta da Coursera de outras semelhantes.

Ao lado da Khan Academy, essa e outras plataformas, como a edX e a Udacity, demonstram que uma verdadeira revolução chegou, muito provavelmente para ficar.

School of Everything + The University Project

O avanço da internet permite divulgar, em tempo real, projetos destinados a transformar a vida das pessoas e sua maneira de se relacionar com os outros. Esse é o objetivo que se propôs o jovem inglês Dougald Hine, que gosta de se apresentar como um criador de organizações, projetos e eventos destinados a repensar o funcionamento da sociedade.

Com menos de 30 anos, Hine relata em seu site (http://dougald.co.uk) que é guiado pelo interesse primordial de pegar qualquer tipo de material e moldá-lo em projetos concretos, reais. Assim, começou a se conectar com pessoas de diferentes meios –artistas, ativistas, designers, políticos e empresários– para tentar entender como abrir espaço para novas ideias e manifestá-las. Até que certo dia se deu conta de que ele mesmo queria se tornar um realizador de projetos.

Um de seus empreendimentos, baseado na internet, é a School of Everything, da qual foi cofundador em 2006 com outros cinco jovens, inspirando-se nas experiências de aprendizado informal da década de 1960 na Califórnia, quando um grupo de pessoas estabeleceu a Free U. Por sua plataforma, que foi reconhecida com vários prêmios e tem o respaldo de investidores como Channel 4, Esther Dyson e Young Foundation, Hine convida os internautas a aprender e ensinar qualquer coisa, onde e quando quiserem –dança, música, artes marciais, escrita criativa, idiomas, ioga etc.–, e lhes propõe fazer parte de uma revolução na educação.

No início de 2011, ele lançou na web outro projeto: The University Project. Sua ideia? Gerar um debate sobre qual deve ser a promessa central de uma universidade, qual o bem comum que lhe dá sentido e quais as possibilidades de gerar espaços mais acolhedores para o espírito acadêmico.

A ambição de Hine em longo prazo é criar um espaço físico para um tipo de aprendizado específico: o impulsionado pela curiosidade, que se apoia na amizade e se compromete com a realidade do mundo, ao mesmo tempo que resiste às pressões e se abre às surpresas. Bem próximo dos ideais que levaram a pedagoga italiana Maria Montessori a criar um sistema educacional alternativo nos primeiros anos do século 20.

E-learning construtivista

Raccoon

A Betrained, plataforma de e-learning 2.0 desenvolvida pela empresa espanhola de educação eletrônica Raccoon, contando com mais de 30 clientes corporativos, se define como uma resposta prática às teorias construtivistas de aprendizado, já que tem por objetivo um aluno ativo na construção do próprio conhecimento. Foi criada tanto para pessoas responsáveis pela formação em uma empresa como para quem a recebe e, diferentemente de outras plataformas de aprendizado colaborativo não exige experiência prévia em e-learning: tem interface amigável e intuitiva, semelhante aos serviços oferecidos pelo Google.

UNIVERSIDADES TRADICIONAIS (MAS NEM TANTO)

General Electric

Talvez o lendário John F. Welch Leadership Development Center, que a GE fundou em Crotonville, Nova York, seja o exemplo mais emblemático de universidade corporativa. Fundado em 1956, o campus foi o primeiro do gênero no mundo. Em uma entrevista para a Knowledge@Wharton em maio de 2010, Susan Peters, vice-presidente de desenvolvimento executivo e diretora de capacitação da GE, explicou que a educação está profundamente enraizada na cultura corporativa da empresa. Um ano antes, ela se referira aos esforços da companhia em preparar seus gestores para lidar com a crise financeira que levaria à quebra de muitas organizações.

Como explicou, entre as competências centrais dos membros da equipe gestora da GE estão pensar grande, autodesenvolver-se e desenvolver os outros, agir globalmente, saber ouvir e se comunicar, e trabalhar em rede. Também enfatizou o valor do “efeito multiplicador” gerado quando quem assistiu às aulas de Crotonville volta a seu posto de trabalho e transmite aos pares o conhecimento específico de cada setor industrial em que a GE atua: de energia a serviços financeiros, passando por equipamentos médicos e de consumo. Por mais que a GE tenha sido questionada pela dureza dos métodos de avaliação de Jack Welch, não há dúvida de que nenhuma outra empresa até hoje abordou melhor o desenvolvimento de líderes.

McDonald’s

Criada no início de 1961 no sótão de um restaurante em Illinois, a Hamburger University centraliza os programas de capacitação e desenvolvimento de liderança do McDonald’s. Desde aquele ano –quando saíram os primeiros 15 participantes–, graduaram-se ali mais de 80 mil gerentes de restaurantes, proprietários e operadores. Atualmente, mais de 5 mil pessoas frequentam essa universidade todos os anos. Reconhecida como a primeira rede de alimentação a criar um centro de capacitação global, a empresa estimula seus funcionários a se formar como líderes, independentemente da posição que ocupam, e seus dirigentes sustentam que sua missão consiste em desenvolver talentos comprometidos com a qualidade, o serviço, a limpeza e o valor. Em 1983, o McDonald’s investiu US$ 40 milhões em sua universidade. Hoje, há 22 equipes de capacitação regional nos Estados Unidos e seis sedes no exterior: Austrália, Alemanha, Grã-Bretanha, Japão, Brasil e China. Todas elas adotam um método de aprendizado global, de modo que os materiais e ferramentas de treinamento se apliquem aos diferentes idiomas e culturas.

Apple

Durante anos a equipe da Apple trabalhou para criar um programa de capacitação executiva que permitisse transmitir o DNA de Steve Jobs para as futuras gerações, de tal maneira que, quando ele já não estivesse à frente da empresa, suas ideias e estilo de gestão sobrevivessem. Uma figura-chave no projeto da Apple University foi o sociólogo Joel Podolny, ex-diretor da escola de negócios de Yale, recrutado pessoalmente por Jobs em 2008 para assumir sua direção. Por orientação de Jobs, Podolny contratou uma equipe de professores de negócios –entre os quais o veterano de Harvard Richard Tedlow, especialista em história dos negócios e biógrafo de Andy Grove– para que escrevessem estudos de caso sobre as decisões mais significativas da história da Apple. Com o tempo, os executivos mais importantes da companhia se baseariam nesses casos para formar futuros líderes.

Adam Lashinsky, editor da revista Fortune, conta em seu livro Nos Bastidores da Apple: Como a Empresa mais Admirada (e Secreta) do Mundo Realmente Funciona (ed. Saraiva) que os casos preparados por Tedlow também analisavam as crises e os tropeços experimentados por outras grandes organizações, o que permitia extrair lições valiosas para ajudar os executivos a evitar experiências similares. Lashinsky sustenta, além disso, que por trás desses casos se nota a mentalidade, tão arraigada na Apple, de que a maior fonte de aprendizado para uma empresa são os erros que comete. Analistas afirmam que Jobs se inspirou em Bill Hewlett e David Packard –os cofundadores da HP– para criar essa universidade, já que foram capazes de construir algo maior do que um produto inovador: uma identidade corporativa, cujos valores centrais definiram o chamado “jeito HP”.

Empresas que ensinam


Conclusão? Não importa a forma. Assim como Peter Senge fala das organizações que aprendem, cada vez mais tem de haver empresas que ensinam.


Ashesi University, Gana

A iniciativa de melhorar a educação costuma partir da empresa, mas, às vezes, ela cabe a um gestor individualmente. Pode acontecer em países desenvolvidos ou em desenvolvimento, porém, de repente, ocorre na periferia. E talvez focalize como público-alvo apenas gestores específicos e igualmente líderes para a sociedade de maneira geral.

Exceção às regras, Patrick Awuah, ex-executivo da Microsoft, fundou a Ashesi University, em Gana, para formar líderes empresariais éticos. Quando adolescente, Awuah deixou seu país para estudar no Swarthmore College, na Pensilvânia, graças a uma bolsa de estudos. No fim do curso, optou por ficar nos Estados Unidos e fazer carreira na Microsoft, onde trabalhou por quase uma década. Mas sua visão de realidade mudou quando se tornou pai; ele começou a se preocupar com a situação da África –perpassada pela violência, pobreza e autoritarismo político– e decidiu voltar para Gana, com a esperança de gerar uma transformação política e cultural.

Awuah está convencido de que os problemas da África se reduzem a uma questão de liderança. E a liderança empresarial, com o dever de ser “guardiã da sociedade”, tem papel fundamental nisso. Ele advoga que a maneira como os líderes são educados é fundamental para o progresso do continente africano. Consequentemente, a educação deve se concentrar nos valores e no desenvolvimento do pensamento crítico.

Sua aspiração se concretizou em 2002, com a criação da Ashesi University –“ashesi” significa “começo” em uma das línguas de Gana. Ensinando administração de empresas, gestão da informação e ciência computacional, e com intercâmbio até com professores de Berkeley, aspira a revolucionar o ensino, o que passaria por privilegiar a responsabilidade sobre a autoridade.


Fonte: Revista HSM Management