Embrapa, pesquisa pública e sementes

Dois recentes artigos publicados no Estado trouxeram à baila tema de alta relevância para o desenvolvimento da agricultura brasileira. O jornalista Celso Ming argumentou que a pesquisa pública conduzida pela Embrapa perdeu o bonde da história no que diz respeito ao melhoramento genético de plantas. O passado atesta que a grande maioria das variedades selecionadas no país se deveu fundamentalmente à pesquisa pública. Na última década, entretanto, a tecnologia de melhoramento de plantas desenvolvida pelo setor privado passou a dominar as vendas, reduzindo drasticamente o papel desempenhado pela pesquisa pública.

A razão para a perda de importância relativa deveu-se, antes de tudo, à falta de recursos para pesquisa e ao intenso debate ideológico que tornou lenta a tomada de decisão da principal empresa de pesquisa pública brasileira.

Em resposta ao referido artigo o pesquisador José Sidnei Gonçalves argumentou que a principal causa para a perda de relevância das sementes desenvolvidas pela pesquisa pública foi a falta de crédito público para dar suporte à comercialização do material gerado pela Embrapa.

Na verdade, pondera o autor, a dependência dos agricultores do capital privado fez com que os produtores se vissem presos em utilizar material genético desenvolvido pela pesquisa privada.

Pelo respeito e admiração que guardamos por José Sidnei e pelo alto nível técnico de seu trabalho julgamos relevante manifestar nossa opinião. Acreditamos que seu argumento, embora possível no campo das ideias, carece de aderência aos acontecimentos dos últimos anos.

É certo que as questões relativas ao financiamento da agricultura são por natureza complexas e de difícil comprovação empírica, mas parece-nos equivocado atribuir ao crédito o principal motivador da perda de relevância da pesquisa pública no mercado de sementes (que é um fato incontestável).

Em nossa opinião o ocorrido se deve muito mais à redução nos investimentos públicos em pesquisa e ao intenso debate ideológico que pautou as decisões das empresas de pesquisa pública, do que propriamente à dependência do financiamento privado para o custeio da agricultura.

É fato que os recursos dedicados à pesquisa agrícola sofreram fortes contenções nas duas últimas décadas, exatamente no momento que a agricultura brasileira avançou para o cerrado e conquistou participação no mercado internacional de diversas cadeias produtivas.

O caso do Estado de São Paulo talvez seja o mais gritante de todos pela relevância que já desempenhou a pesquisa pública paulista. Lamentavelmente, centros de grande relevância na geração de pesquisa no pós-guerra, viram seus quadros se reduzirem e seus recursos de custeio minguarem. Entretanto, é verdade também que o debate ideológico limitou sobremaneira as possibilidades de geração de tecnologia.

As dificuldades de estabelecer parcerias de pesquisa com a iniciativa privada marcaram a gestão das empresas de pesquisa pública nas últimas décadas. Além disso, é impossível negar o combate ideológico aos transgênicos, sem o devido suporte da pesquisa.

Esse comportamento faz lembrar os tempos do surgimento da indústria de adubos no Brasil, quando se combatiam os ditos fertilizantes químicos (inorgânicos) por “envenenar a terra”, um debate completamente superado pelos fatos.

Em gestões anteriores da Embrapa houve evidente combate interno às intenções da presidência de aumentar as parcerias com a iniciativa privada. No complexo mundo da biotecnologia alianças estratégicas são vitais para garantir presença em mercados e regiões específicas.

Ademais, a falta de uma política comercial mais agressiva limitou o acesso ao mercado. É sempre bom ter presente que o setor público brasileiro tem grandes dificuldades de realizar transações usuais de mercado.

Mesmo uma empresa como a Embrapa sofre com os dilemas de comercializar com a iniciativa privada. Foi no vácuo da falta de capital, do preconceito aos transgênicos, das limitações comerciais e da aversão às parcerias com o setor privado, por parte de setores da Embrapa, que as multinacionais de sementes expandiram sua participação.

No que tange ao crédito, é relevante notar que o financiamento privado na agricultura brasileira mudou bastante nos últimos anos. A substancial melhora de renda das últimas cinco safras permitiu aos agricultores adquirirem seus produtos com parcela crescente de capital próprio.

As principais empresas de insumos que atuam no país viram suas vendas à vista aumentarem significativamente nos últimos anos. Ademais, se houve algo que melhorou na política agrícola brasileira nos últimos anos foi o crédito rural público.

Esse fato é tanto verdade para o crédito de custeio, quanto o de investimento. Houve nos últimos cinco anos expressivo aumento nas vendas de máquinas e implementos agrícolas que serviram por aumentar ainda mais a produtividade e, consequentemente, a rentabilidade da agricultura brasileira financiados com recursos públicos.

O crédito de custeio também aumentou, ainda que seja verdade que as restrições ao volume disponibilizado por tomador represente um inibidor para o maior crescimento do financiamento público na agricultura.

A consequência do crescimento do capital próprio e do financiamento público é que a importância relativa do financiamento privado realizado por empresas de insumos caiu nesses últimos anos, justamente quando no mercado de sementes houve forte expansão da participação do material advindo das empresas privadas.

É válido notar que foi no sul do Brasil que as sementes transgênicas passaram a ser adotadas mais prontamente e foi onde a tecnologia apresentou a maior taxa de penetração.

É exatamente no sul, região com predominância de propriedades pequenas e médias, que a importância do crédito rural público, em especial do Banco do Brasil, é a maior do país. Assim é que os mecanismos de troca são muito menos intensos no sul do Brasil do que no cerrado, por exemplo.

É importante notar ainda que o financiamento privado no mercado de sementes é bem mais modesto do que aquele que existe no mercado de adubos e defensivos.

Além disso, a maior parte das empresas de genética não tem um pacote de produtos que envolva sementes, adubos e defensivos. As grandes tradings fazem trocas com adubo, algumas com defensivos, mas poucas com sementes.

Assim, mesmo que o financiamento privado ainda guarde sua relevância, no caso de sementes parece-nos pouco provável que os agricultores tenham que aceitar qual variedade adotar por conta da dependência de capital das empresas de insumos.

Em resumo, a imputação das mudanças no mercado de sementes ao sistema de compra antecipada e aos novos papéis de crédito é exagerada:

  • de um lado pelo tamanho: o crédito vindo das indústrias de sementes é pequeno;
  • de outro porque na compra antecipada a escolha das sementes é feita pelo agricultor;
  • em terceiro lugar porque existe uma grande parcela de recursos próprios envolvidos (e aí o fazendeiro compra o que quiser);
  • finalmente, porque a parcela do Banco do Brasil ainda é muito grande.

A perda de importância da pesquisa pública no mercado de sementes deve-se muito mais à falta de recursos e ao preconceito, do que à estrutura de financiamento da agricultura brasileira.


Fonte: O Estado de S.Paulo, por José Roberto Mendonça de Barros