Agricultura familiar em debate

A agricultura familiar e camponesa há tempos vem sendo objeto de estudo de acadêmicos, especialmente no campo da sociologia rural e extensão. O debate sobre tipificações na agricultura e as opções de políticas públicas para atender tais grupos também é destaque entre estudiosos, lideranças de movimentos sociais e políticos.

Apesar das muitas divergências de opiniões, em recente debate no Congresso da SOBER (Sociedade Brasileira de Economia e Sociologia Rural), os acadêmicos presentes estavam de acordo que o termo concentra enorme confusão e que, pelo menos em parte, a origem do problema das definições é o uso do termo ‘agricultura familiar’ em contextos muito distintos.

No painel “Conceituações e Definições de Agricultura Familiar no Brasil e no Exterior”, organizado pelo economista Flavio Bolliger, coordenador de Informações Agropecuárias do IBGE, diversos especialistas no assunto divergiram e convergiram idéias.

Maria Thereza Macedo Pedroso, da Embrapa, chamou atenção para o “uso pasteurizado” da expressão agricultura familiar, que desconsidera “a diversidade interna dos estabelecimentos rurais sob gestão familiar.” Segundo ela, existe muita “confusão entre a ação governamental destinada ao grupo denominado como agricultura familiar e as explicações de cunho teórico.”

O debate sobre tipos e grupos específicos dentro do universo da agricultura brasileira é pertinente especialmente para embasar políticas públicas focadas e, desta forma, mais eficazes.

Para Antônio Márcio Buainain, professor da UNICAMP, “é impossível atender a todos os mais de 4 milhões de estabelecimentos classificados oficialmente como familiares” devido a uma série de restrições.

Por isto, ele defende a necessidade de colocar em prática o discurso da política diferenciada, que há décadas está presente nos documentos oficiais e textos acadêmicos que arriscam recomendações de políticas públicas, mas ausente das próprias políticas.

A diferenciação implicaria focalizar os instrumentos de política agrícola em alguns segmentos que tenham condições de responder aos estímulos de crédito, assistência técnica e de mercado, e beneficiar os demais com os mecanismos de proteção e de promoção do desenvolvimento social e humano.

Ao contrário do que alguns argumentam, isto não significaria abandonar aqueles que não têm viabilidade aparente e nem condená-los ao Bolsa Família.

Primeiro porque o Bolsa Família não é uma condenação, e em segundo porque o caminho da agricultura não é a única porta de saída da pobreza rural. Apesar das divergências sobre o que de fato pode-se chamar de agricultura familiar, a Lei 11.326 define com clareza o conceito para fins da política pública. O aplicou os critérios dessa Lei e assim contabilizou pouco mais de 4,3 milhões de estabelecimentos, ocupando uma área de 80 milhões de hectares (correspondendo a 24% da área total), abrigando 12,3 milhões de pessoas ocupadas (74% da ocupação na agricultura) e gerando um Valor Bruto de Produção de R$55,5 bilhões, o que equivale a 33% do total.

Mauro Del Grossi, da Universidade Nacional de Brasília e Assessor do Ministério de Desenvolvimento Agrário, utiliza tais números não para antagonizar os produtores que a Lei não enquadra como familiares, mas para chamar atenção para a importância social e econômica destes produtores.

O Pronaf, e não a Lei, classifica os agricultores familiares em 5 grupos (Grupo A ao Grupo E), em função da situação (o Grupo A refere-se aos assentados pelo Programa Nacional de Reforma Agrária e beneficiários do Programa de Crédito Rural) e do nível e composição da renda bruta (B aqueles que atendem ao critério da Lei e obtenham renda bruta anual familiar de até R$3 mil e E aqueles com renda bruta acima de R$45 mil e até R$ 80 mil).

Ainda que esta classificação não expresse categorias analíticas e nem tenham a pretensão de representar grupos sociais com dinâmicas particulares, é evidente que se trata de uma boa aproximação da profunda diferenciação do universo legal.

Em relação ao problema das diferentes definições relativas à agricultura familiar, o professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul Sergio Schneider salienta que existem as definições empíricas, que variam de lugar para lugar, grupo para grupo.

São os colonos, os sitiantes, ribeirinhos, moradores, agricultores, enfim, nomes que identificam e designam grupos de forma imediata, independente de polêmicas conceituais, acadêmicas e ou políticas.

De outro lado, existem as definições normativas, para fins legais e de políticas públicas, e Scheineder afirma que “a definição da Agricultura Familiar no Pronaf é uma norma, uma lei, que pode ser questionada desde o ponto de vista da validade para a política pública e não como conceito”.

Para fins de operacionalização de políticas, são necessárias categorias simplificadas, e o critério de avaliação destas categorias deveria ser se atendem ou não aos objetivos da política. Neste sentido, a definição legal da agricultura familiar atendeu objetivos de assegurar proteção e promoção a um grupo importante de produtores que se enquadram em diferentes definições colonos, sitiantes, moradores etc. e que vinham sendo excluídos da política pública. Do ponto de vista normativo, a questão relevante seria avaliar em que medida a introdução legal da agricultura familiar contribuiu para estes objetivos. Um exemplo claro do uso normativo de categorias para fins de política é a linha de pobreza adotada pelo Bolsa Família, e que vem sendo amplamente utilizada para contabilizar os pobres no Brasil. É evidente que os pobres não se resumem aos que se enquadram nesses critérios e não seria admissível que a academia assumisse este corte como única verdade e passasse a sustentar que apenas quem atende aos critérios do Bolsa Família são de fato pobres. Isto equivaleria a jogar fora 30 anos de reflexão sobre a pobreza, incluindo os trabalhos magistrais de Amartya Sen, Premio Nobel de Economia em 1998.

Outros importantes pontos de debate sobre agricultura familiar são os seus problemas e limites. Segundo Scheider, os “críticos” indicam que “o problema da agricultura familiar é ser pequena”, ou seja, não ter escala. Buainain, mesmo não se considerando um crítico da agricultura familiar defende que a escala produtiva e o tamanho são sim problemas do universo de produtores legalmente enquadrados como familiares no Brasil. Não se trata de uma característica intrínseca da agricultura familiar, mas uma decorrência da definição legal adotada no Brasil e do enquadramento de vários grupos que hoje passam a se autodenominar por razões políticas agricultores familiares. Nos EUA, por exemplo, a classificação de agricultor familiar tem como base exclusiva a forma de gestão e o valor das vendas. No Brasil a lei impõe o limite de 4 módulos rurais, que em muitas localidades implica em um sério problema de escala e limita as possibilidades de crescimento deste grupo.Apesar da divergências de idéias, o painel deixou claro que os maniqueísmos usados nas discursos da agricultura familiar não são desejáveis.

Produção para o mercado vs produção para autoconsumo; agricultura comercial vs produção para abastecimento local; modelo devastador/ poluidor X preservacionismo: nenhuma destas polarizações representa a realidade agrária e produtiva da agricultura brasileira; como também não é apropriada “a homogeneização do agronegócio como categoria”, seja na versão idealizada por uns para representar o moderno e eficiente e simbolizar o sucesso da agricultura, seja na versão demonizada por outros, como devastadora do meio ambiente, concentradora de riqueza e empobrecedora de regiões, causa de todos os males do meio rural.


Fonte: RedeAgro, por Laura Antoniazzi