Passado didático das marcas

Crie uma história fictícia sobre o que poderia ter acontecido em seu negócio. Isso ajudará sua empresa a tomar decisões no futuro, como garantem os especialistas em estratégia Adrian Slywotzky e Karl Weber, com o exemplo real Blockbuster – Netflix

Transições são, por sua própria natureza, inesperadas. Entretanto, paradoxalmente, elas ocorreram com tanta freqüência na história (inclusive na história dos negócios) que nenhum líder empresarial deve ficar realmente surpreso ao topar com uma. Estar preparado para uma transição, e saber como transformá-la de ameaça em crescimento, deve ser parte do arsenal estratégico de todo executivo, porque a experiência mostra que você viverá para ver uma.

Um dos problemas que temos para entender o risco da transição é que, ao olharmos para o passado, vemos um atalho histórico e rapidamente aprendemos a encará-la como óbvia e inevitável. Da mesma forma, quando olhamos adiante, vemos uma história futura. Temos chamado a isso de nosso “prognóstico-base”, “caso mais provável” ou “cenáriopadrão”. Enquanto parte de nossa mente sabe que o futuro sempre reserva uma dose de incerteza, outra fica rapidamente confortável ao partir do pressuposto de que o futuro que consideramos mais provável é, de algum modo, real e até inevitável. Tal premissa leva a um não-pensamento sobre o futuro, a um pensamento preguiçoso, descuidado. Para remediar esse ponto cego em nossa mente, precisamos mudar a maneira de enxergar tanto o passado como o futuro.

Quando olhamos para o passado, temos de começar a ver histórias alternativas que poderiam facilmente ter ocorrido. Por exemplo, os gregos perdendo a Batalha de Salamina para os persas e deixando-os, assim, estabelecer o domínio asiático na Europa oriental. Nos Estados Unidos, os homens do general Joshua Chamberlain sendo derrotados em Little Round Top, o exército confederado do general Robert Lee tomando conta do Estado da Pensilvânia e o Sul conquistando sua independência [e mantendo a escravidão]. A corte de D. João VI não se transferindo para o Brasil e Portugal –com suas respectivas colônias– caindo em mãos francesas.

Ou, nos negócios: as leis européias medievais contra os juros compostos não sendo revogadas. O carro modelo T sendo inventado e comercializado por um empreendedor russo em vez de Henry Ford. A IBM decidindo não entrar no negócio dos computadores. A Xerox comercializando com sucesso o mouse e a interface gráfica para o usuário. A Apple abrindo seu sistema operacional para todos. São Paulo aceitando a oferta da Light para construir metrô na cidade na década de 1930. Juscelino Kubitschek não desestimulando tanto o transporte ferroviário a fim de favorecer a indústria automobilística.

O que teria acontecido? Como o mundo seria diferente hoje? Que fortunas nunca teriam sido criadas? Que fortunas teriam sido multiplicadas além da imaginação? Para efeito de comparação, consideremos o xadrez, o jogo de estratégia por excelência. No meio do jogo, um grande mestre do xadrez como Gary Kasparov analisa o tabuleiro e vê representada uma dúzia de histórias futuras artificiais possíveis. Ao identificar a tal história futura que ele quer transformar em real, Kasparov trabalha de trás para frente ao longo da história para identificar o único melhor movimento e as melhores probabilidades, assim como o primeiro passo no caminho particular que quer criar.

Obviamente, Kasparov tem de fazer um movimento – isso é exigido pelas regras do xadrez. Na vida real, nós não somos obrigados. Podemos postergar a decisão, deixando o tempo passar e esperando um pouco mais de história se transformar de artificial em real antes de decidir. Mas esperar é um narcótico: agradável, formador de hábitos e, em última instância, fatal.

Passados alternativos, futuros possíveis

Pensar sobre o mundo com a lógica das possibilidades ramificadas (o que o escritor argentino Jorge Luis Borges chamou de “o jardim de caminhos que se bifurcam”) é uma maneira diferente de ver a vida –diga-se de passagem, uma maneira incrivelmente aviltante, pois reconhece o papel vital da sorte na história que nos produziu. Mas isso pode também ser incrivelmente lucrativo, porque enxergar muitos futuros possíveis é um primeiro passo para escolher entre eles e então trabalhar para tornar real o futuro que se preferir.

Quando você usa história artificial para seguir os passados alternativos e futuros possíveis de sua companhia, obter os fatos corretos é crucial. Quais foram as verdadeiras encruzilhadas da estrada? Quais foram as opções genuínas no momento? Quais foram as respostas mais prováveis dos concorrentes? Que incertezas não resolvidas poderiam ter mudado o cenário? Que indicadores poderiam ter sido acompanhados para revelar o momentum de mudança?

Tenha em mente, contudo, que essa ferramenta pode ser humilhante, até mesmo dolorosa. Quando você mergulha para valer nas realidades do passado – as informações disponíveis no momento, as restrições de tempo sob as quais as lideranças trabalharam e, acima de tudo, as pressões psicológicas, organizacionais e sociais enfrentadas (“O que as pessoas vão pensar?”) –, pode ser forçado a admitir que, nessas circunstâncias, teria cometido exatamente os mesmos erros que seus antecessores cometeram.

O que torna tão útil a criação de histórias artificiais? Viver em retrospecto as decisões sob alta pressão é uma forma de preparar-se para os desafios similares que serão enfrentados na próxima semana ou no próximo ano. Você ainda pode dar um passo errado ao ser forçado a decidir às pressas, em tempo real, é claro. No entanto, ter revivido os vários pontos de decisão pelo replay de vídeo melhorado que é a história artificial aumenta suas possibilidades de tomar a decisão correta enquanto o jogo real está sendo jogado.

Netflix versus Blockbuster: a história artificial

A mudança de tecnologia não é o único tipo de risco que pede uma dupla aposta (dupla aposta é uma variante em grande escala na estratégia familiar de jogos como blackjack e corrida de cavalos, na qual o jogador protege suas apostas ao colocar dinheiro em dois ou mais resultados, aumentando assim as probabilidades de um resultado vencedor.

Ou, como Yogi Berra disse, “Quando deparar com uma encruzilhada na estrada, pegue-a”). Às vezes, o risco envolve uma combinação de desenho de negócio e tecnologia. Quando um modelo de negócio surge, duplas apostas inteligentes podem ser necessárias para salvar sua empresa. É uma lição que a Blockbuster poderia ter dominado, mas que aprendeu a tempo apenas no mundo da história artificial.

A febre de internet de 1999 infectou inúmeras marcas e organizações em quase todos os setores. Alguns negócios, como livrarias e serviços financeiros, já experimentavam os estágios iniciais de uma revolução on-line. Outros, entre eles o de varejo de alimentos, testemunhavam tentativas especulativas de criar novos modelos de negócio baseados na internet que provariam, pelo menos naquele momento, ser ilusórios. Infelizmente, distinguir a verdadeira revolução do fogo de palha é muito mais fácil em retrospecto do que em tempo real.

No negócio de homevideo, o destaque da internet é a marca Netflix, que está desafiando a gigante do setor Blockbuster com um modelo de locação de vídeos on-line. A Netflix oferece várias vantagens ao consumidor: a velocidade e a facilidade de escolher vídeos on-line (em vez de procurar nas gôndolas da loja local); acesso a um vasto catálogo que inclui dezenas de milhares de filmes e outros programas (em vez da limitada seleção disponível nas lojas da Blockbuster); entrega em domicílio rápida e confiável e retorno por porte pago (em vez de o cliente ter de ir e voltar da loja para retirar e retornar os vídeos); e, mais importante, a liberdade de ficar com o vídeo por um tempo ilimitado (em vez do prazo de três dias imposto pelas multas por atraso estabelecidas pelas lojas convencionais).

Em 1999, a marca Netflix tinha apenas 100 mil assinantes e receitas de meros US$ 5 milhões, se comparados com os US$ 4 bilhões da Blockbuster. A direção da grande rede de locadoras assumia uma atitude de esperar para ver como iria a Netflix.

Isto é, até 2000. Naquele ano, a Netflix deu vários grandes saltos para ser um sério concorrente no negócio de locação de vídeos. A base de assinantes quase triplicou, para 292 mil. As receitas aumentaram mais de sete vezes, para US$ 36 milhões. E a cobertura favorável da imprensa fez com que milhares de consumidores da marca Blockbuster abrissem contas na Netflix todos os meses.

Os diretores da Blockbuster decidiram não esperar mais. Em março de 2000, anunciaram planos de lançar seu próprio serviço de locação on-line, a Blockbuster On-line, com um desenho muito parecido ao da Netflix. Entretanto, a Blockbuster tinha algumas vantagens significativas sobre a estreante, como reconhecimento de marca mais alto, base de clientes maior, rede com mais de 5 mil lojas nos Estados Unidos e relações positivas com os grandes estúdios de cinema, dos quais a Blockbuster era a maior consumidora.

Para maximizar o valor de sua ação, a Blockbuster planejou uma integração inteligente de suas operações on e off-line, dando aos consumidores a liberdade de se mover entre eles à vontade. Um assinante on-line que quisesse devolver o filme na loja poderia fazê-lo – e, se ele visse um DVD na prateleira de lançamentos enquanto estivesse ali, poderia alugá-lo como parte de sua assinatura on-line. As taxas de atraso se tornaram coisas do passado. “Francamente, odiamos vê-las partir”, disse um executivo da Blockbuster, “mas, no longo prazo, nosso fluxo de receitas será mais forte e sustentável, já que será construído com base em consumidores felizes.”

No final das contas, era uma afirmação muito atraente. E a Blockbuster ampliou o lançamento com uma série de medidas adicionais para expandir suas ofertas de serviço ao consumidor e solidificar sua posição como líder nacional na locação de vídeos. Em janeiro de 2002, começou a oferecer recomendações customizadas de produtos usando um software de filtragem colaborativa fora da prateleira, ligado ao enorme banco de dados do histórico de aluguel de filmes individual. Em outubro de 2003, a empresa lançou um atraente programa de fidelidade, oferecendo aos membros descontos em produtos e serviços Blockbuster, solidificando assim a relação com sua base de consumidores.

As ações da Blockbuster aproveitaram os ventos que moviam as velas da Netflix. O crescimento de assinaturas com que a Netflix contava nunca se materializou. Em contraste, a Blockbuster experimentou uma explosão de membros tremenda, e em 2004 suas receitas on-line somavam mais de US$ 2 bilhões – cerca de um quarto do turnover total da empresa.

No início do ano seguinte, a Netflix jogou a toalha. O anúncio de que a Blockbuster tinha comprado os ativos da antes promissora companhia mereceu pouco menos de uma coluna nas páginas de jornal. Outras histórias em 2005 e 2006 atraíram muito mais atenção dos mundos da mídia e entretenimento, com manchetes como “Blockbuster alavanca amplo banco de dados de locação de filmes em acordos de marketing com estúdios de Hollywood” e “Já dominante em locações, Blockbuster conquista liderança em novo negócio de download de filmes”.

Netflix versus Blockbuster: a história real dessa luta de marcas

Essa poderia ter sido a história. Infelizmente para a Blockbuster, não foi. Apesar do crescimento da Netflix nos primeiros anos do novo milênio, os executivos seniores da Blockbuster se abstiveram de fazer a dupla aposta. Assim como muitos antes, eles falharam em levar a ameaça a sério do novo modelo de negócio concorrente. “Locação de vídeos é uma decisão por impulso”, disseram. “São poucos os fanáticos por filmes que olhariam uma lista on-line”, convenceram-se. “As pessoas preferem olhar nossas prateleiras para alugar um filme para o fim de semana.” E, claro, a Blockbuster tampouco renunciou ao dinheiro fácil que ganhava com as multas por entrega em atraso. Para piorar, quando a bolha das ponto.com explodiu, em 2001, isso reforçou o sentimento de que o sucesso da Netflix poderia ser ilusório. No final de agosto de 2002, um porta-voz da Blockbuster chegou a desqualificar a base de clientes da Netflix como um “mercado de nicho”.

Em 2003, enquanto a Blockbuster ficava estacionada, o número de assinantes da Netflix continuava a crescer: de 292 mil para 456 mil em 2001 e para quase 1,5 milhão. As receitas de vendas aumentaram constante e regularmente, ultrapassando os US$ 250 milhões. Era um número modesto se comparado com as receitas de quase US$ 6 bilhões da Blockbuster, mas grande o suficiente para ser levado a sério por Wall Street. No início de 2003, as ações da Netflix tiveram melhor desempenho do que as da Blockbuster.

Walmart entra da briga das marcas de videos

Não foi a Blockbuster, e sim o WalMart que fez a primeira tentativa de conter a “avalanche” da Netflix, abrindo seu negócio de locação de vídeos on-line em junho de 2003. Só em agosto de 2004 – quase seis anos após a abertura da Netflix e 14 meses depois do WalMart – é que a Blockbuster anunciou a entrada no mercado de locação on-line, em um movimento que os analistas consideraram tímido e tardio.

Em meados de 2006, a Netflix ostentava 5,2 milhões de assinantes on-line, enquanto a Blockbuster tinha 1,4 milhão (o esforço do WalMart teve pouco progresso e foi oficialmente encerrado em junho de 2005). Em janeiro de 2005, a Blockbuster finalmente foi forçada pela pressão dos consumidores a eliminar suas multas por atraso. Mas, devido à entrada de leão permitida à Netflix, essa ação teve relativamente pouco impacto na competição entre as duas companhias –exceto em eliminar mais de US$ 400 milhões em receitas anuais dos cofres da Blockbuster.

Hoje outras empresas – que não a Blockbuster – têm agido para posicionar-se como líderes da próxima década em distribuição de entretenimento. AOL, Amazon e Apple estão oferecendo serviços on-line de download de filmes, com o WalMart pronto para voltar a fazer o mesmo. A Apple fechou parceria com a Disney para fornecer filmes a serem vistos no iPod (e, em pouco tempo, por streaming de vídeo em aparelhos de TV), e na primeira semana de oferta, com apenas 70 títulos para escolher, foram vendidos 125 mil filmes. E a própria Netflix está mudando sua cadeia de valor com acordos de co-produção e marketing para filmes independentes, incluindo uma parceria de 50/50 com a Roadside Attractions para adquirir e lançar um filme romântico do Festival de Sundance de filmes independentes.

Se a Blockbuster continuar a responder dessa forma preguiçosa às novas ameaças tecnológicas, a empresa pode não sobreviver às próximas duas descontinuidades que afetarem esse setor. E ela não é a única que faz isso, nem é esse o único setor onde isso está ocorrendo neste exato momento.

No fim do dia, não importa muito se o risco vem de uma novíssima tecnologia ou de uma mudança no desenho do negócio que nada tem de tecnológica. A dupla aposta oferece a garantia de proteger seu negócio e abrir potencialmente maior fonte de novo crescimento.


Fonte: Revista HSM Management – The Conference Board Review.

O autor Adrian Slywotzky, considerado um dos maiores especialistas em estratégia empresarial da atualidade, é diretor da firma de consultoria em estratégia Oliver Wyman. Escreveu, entre outros, os livros A Arte do Lucro, Como Crescer em Mercados Estagnados e, com Karl Weber, Do Risco à Oportunidade (todos ed. Campus/Elsevier).