Na base da pirâmide dos consumidores

O êxito nos mercados em desenvolvimento, com consumidores de baixa renda, tem menos a ver com conquistar novos consumidores do que lidar com questões de acessibilidade, aceitação, availability (disponibilidade, em inglês) e awareness (consciência de produto), como mostra pesquisa realizada durante dois anos pelos especialistas europeus Jamie Anderson e Costas Markides. Acompanhe exemplos reais.  

As empresas que desenvolvem novas estratégias para enfrentar a concorrência e entrar em mercados que ainda não exploraram freqüentemente o fazem introduzindo avanços importantes na arquitetura ou nos modelos de negócio. Elas identificam lacunas no modo como um setor de atividade está organizado e, então, encontram meios de transformá-las em mercados lucrativos. Elas encontram novos consumidores (“quem”), novos produtos ou serviços (“o quê”) ou novas maneiras de promover, produzir ou distribuir (“como”).

Apesar de ter ocorrido, nos últimos anos, uma onda de interesse pela forma do crescimento econômico do mundo em desenvolvimento, a maioria das pesquisas de inovação estratégica continua concentrada nos mercados desenvolvidos. Nós, ao contrário, decidimos estudar os fatores de inovação estratégica em mercados em desenvolvimento em empresas estabelecidas de determinada variedade de setores de atividade para entender as razões por trás de seu êxito –e descobrir em que tais fatores diferem dos que observamos nos países desenvolvidos. Descobrimos que a inovação estratégica em mercados em desenvolvimento se distingue de importantes maneiras:

  • A questão não é encontrar novos “quem” –na verdade, assumindo que os produtos sejam acessíveis, existem muitos consumidores de baixo ou nenhum hábito de consumo a abordar.
  • Não se trata de desenvolver novas características de produto, mas de adaptar produtos existentes aos consumidores que têm menos recursos ou bagagem cultural diferente.
  • Trata-se menos ainda de criar outros modelos de negócio ou de se diferenciar na maneira como a empresa compete.
  • O desafio na maioria dos mercados emergentes é, isto sim, estabelecer os ingredientes básicos de mercado, como canais de distribuição e demanda do consumidor da base da pirâmide socioeconômica.

As organizações que são capazes de confrontar essas questões têm conseguido, na maioria das vezes, forte participação de mercado e crescimento do lucro.

Acessibilidade: como desenvolver produtos e serviços acessíveis

Em muitos casos, a questão não é encontrar consumidores. Citando dados publicados por C.K. Prahalad em 2004, as 20 maiores economias emergentes possuem, juntas, mais de 700 milhões de domicílios com renda agregada de cerca de US$ 1,7 trilhão por ano, quase o equivalente ao Produto Interno Bruto (PIB) da Alemanha. Os 25 milhões de domicílios mais pobres do Brasil têm renda anual de cerca de U$ 140 bilhões por ano; os 286 milhões da China, de mais ou menos US$ 910 bilhões; e os 171 milhões da Índia, de aproximadamente US$ 500 bilhões.

Talvez o maior obstáculo que as empresas devam superar é assegurar que os produtos ou serviços sejam acessíveis. Consumidores de baixa renda possuem baixas receitas disponíveis e, portanto, nunca consomem ou são consumidores não freqüentes de produtos e serviços. Inovadores estratégicos precisam desenvolver produtos compatíveis com os fluxos de caixa de consumidores que em geral são pagos por dia, mais do que semanal ou mensalmente. Por exemplo, dois terços dos moradores de vilarejos da Índia estão na categoria mais baixa de renda, tornando-se altamente sensíveis a preço.

Eles gastam acima de dois terços de sua renda em comida e precisam pagar por produtos como sabonetes, perfumes, xampus e serviços de telecomunicações com quaisquer que sejam os recursos que lhes restarem.

Com cerca de 50% da população das Filipinas vivendo abaixo da linha de pobreza, a questão mais premente para as operadoras de telecomunicação móvel, tal como a Smart Communications, era a acessibilidade. Pagar por serviço de telefonia celular não constituía problema para os consumidores de renda média ou alta. Mas, para as pessoas de baixa renda, o cartão pré-pago de telefonia mais barato disponível, em 2002, era de aproximadamente US$ 2, um desembolso muito grande, superior a 80% da receita diária para mais da metade da população.

Àquelas taxas, os analistas não viam a penetração do telefone celular indo além de 30% da população até, pelo menos, 2008. Ao pensar na maneira de atingir os consumidores da base do mercado, a Smart não se importou em fazer benchmarking com outras empresas do setor; poucas, se alguma, operadoras de telefonia celular tinham desenvolvido, com sucesso, ofertas para consumidores de muito baixa renda. Em vez disso, ela estudou casos de sucesso de outros setores de atividade.

produtos unilever

A Procter & Gamble e a Unilever, por exemplo, têm sido particularmente eficazes no desenvolvimento de estratégias para manter baixos os preços de produtos, oferecendo micropacotes para itens como xampus, sabonetes e alimentos. Embora comprar pequenas quantidades ou sachês não fosse a maneira mais econômica de adquirir tais mercadorias, isso permitiu aos consumidores ficar dentro de seus orçamentos. Eles compravam os produtos nas pequenas tendas de comércio (sari-sari) do país, que sobreviviam com transações de alto giro e baixo valor. Na verdade, comprar mercadorias em pequenas quantidades fazia parte da vida diária. Pesquisas de consumo revelaram que os filipinos de baixa renda iam quatro ou cinco vezes por semana a sua loja sarisari local.

Para atrair os consumidores de baixa renda, a Smart desenvolveu uma tecnologia de recarga over-the-air (pelo ar) e introduziu planos pré-pagos que ofereciam tempo de utilização em pequenas unidades. Os preços foram quebrados em pequenas quantias não disponíveis anteriormente (equivalentes a apenas cerca de US$ 0,50, por exemplo). A nova estratégia de preços foi um tremendo sucesso; em dez meses, as pequenas embalagens estavam gerando receitas de mais de US$ 2 milhões por dia. Em seguida, a Smart lançou um serviço, chamado “Carga Pasa”, que tornou as recargas mais acessíveis aos consumidores de baixa renda, permitindo a transferência de valores de poucos centavos de uma conta para outra.

A Smart descobriu que as margens de lucro dessas pequenas unidades de tempo atingiam ou superavam as obtidas com os cartões pré-pagos. Resultado: no final de 2006, os ganhos da companhia, antes de juros, impostos, depreciação e margem de amortização, de 64%, estavam entre os mais altos de qualquer outra operadora de celular na região Ásia-Pacífico, apesar do fato de sua receita média por usuário ser uma das mais baixas.

Empresas de outros setores de atividade formularam estratégias criativas similares para aumentar a receita e o lucro. Na Índia, por exemplo, pequenas cidades sempre sofriam de queda de energia prolongada, que duravam de 8 a 12 horas por dia. Para lojistas, uma fonte de energia alternativa é essencial, mas muitos não podem comprar um gerador; mesmo o menor gerador da Honda custa mais do que US$ 400, e os bancos não fazem empréstimos sem garantia para pequenas lojas.

Então, um distribuidor da Honda em Uttar Pradesh surgiu com uma solução. Ele organizou 20 lojistas em um grupo e os encorajou a fazer pagamentos mensais de US$ 22 para um fundo comum. Então, por sorteio, um lojista ganharia um gerador Honda todo mês; depois de 20 meses, todos os 20 membros do fundo teriam seu próprio gerador. A Honda, mais tarde, expandiu esse mecanismo de financiamento para outras partes do país.

Também na Índia, o transporte motorizado ainda é um luxo para a população de baixa renda. Não é incomum ver famílias de quatro pessoas andando em uma única motocicleta. Acidentes, hospitalizações e mortes são muito comuns. Diante da demanda reprimida por automóveis acessíveis, a Tata Motors, divisão automobilística do maior conglomerado do país, espera comercializar um carro de baixo preço. Parte significativa do custo total de um automóvel novo na Índia está ligada aos custos de distribuição e armazenagem, particularmente em regiões mais isoladas. Apesar de os custos de mão-de-obra da Tata não serem altos, pelos padrões internacionais, ela viu uma oportunidade de reduzir os custos significativamente, ao desenvolver um kit de embalagem compacta que poderá ser montado por funcionários em oficinas de pequeno e médio portes, nas vilas.

Em suma, a empresa eliminará a margem do revendedor. Ao mesmo tempo, vem experimentando materiais e componentes para redução de custos, como carroceria de plástico e técnicas de fabricação simplificadas, e está avaliando se, em vez de soldar as partes do carro, é possível aparafusá-las ou colá-las. O objetivo é construir um automóvel que possa ser vendido por US$ 2,2 mil no final de 2008.

Aceitação: como ter produtos e serviços adequados

Além da acessibilidade, outro desafio importante para atender os mercados de baixa renda é fazer o cliente aceitar determinados produtos ou serviços. Para tanto, as empresas podem ter de ajustar a relação preço–desempenho de seus produtos e fazer outros tipos de modificações para assegurar que o produto seja culturalmente aceitável. Reduzir ou eliminar características é uma das maneiras de tornar os produtos mais aceitáveis. Para terem sucesso, as organizações devem estar prontas a fazer outras mudanças para lidar com a resistência do mercado. Na verdade, por razões culturais, sociais, religiosas ou políticas, os produtos projetados para consumidores do mundo desenvolvido podem ser inadequados.

Consideremos as mulheres indianas e os cuidados com os cabelos. Em um país que tem tabus culturais contra sinais de luxo, tratar dos cabelos é, freqüentemente, a única indulgência da mulher. Ao mesmo tempo, há uma crença comum de que xampus baratos deixam os cabelos bastante ressecados; de fato, muitas mulheres de baixa renda preferem usar um único sabonete tanto para os cabelos como para o corpo.

Em vez de tentar lutar contra essa percepção, a Hindustan Unilever, subsidiária da Unilever anteriormente conhecida como Hindustan Lever, começou a vender um sabonete barato, para uso geral, chamado Breeze 2 em 1, com ingredientes especiais para cabelos saudáveis. No final de 2006, mais de 30% das pessoas de baixa renda das zonas rurais na Índia estavam usando xampu em barra ou na forma líquida, e a Hindustan Unilever tinha uma participação de 48,5% no mercado de xampus.

Lutar contra atitudes culturais predominantes pode ser complicado. Em meados dos anos 90, o Haier Group, fabricante líder de eletrodomésticos da China, descobriu que vários moradores rurais de baixa renda consideravam fútil possuir uma máquina só para lavar roupas. Na verdade, muitos daqueles que compravam uma lavadora a usavam para múltiplas tarefas, como lavar verduras e legumes. Algumas empresas poderiam ter desaprovado tal uso, mas a Haier viu isso como oportunidade. Na verdade, os gerentes de produto pediram aos engenheiros para modificar as máquinas de lavar existentes para que os canos não entupissem com as cascas dos legumes. A empresa, então, elaborou instruções de como utilizar o produto para limpar legumes.

A Haier também desenvolveu uma lavadora com a qual era possível fazer queijo de leite de cabra. Tais inovações aumentaram a aceitação das máquinas de lavar entre os consumidores chineses de baixa renda e ajudaram a Haier a conquistar a liderança do mercado nas províncias rurais do país, salvando-a das guerras de preços do setor de eletrodomésticos do país.

Muitas vezes, atender às necessidades dos consumidores requer ampliar a definição de o que o produto pode fazer. Por exemplo, a pesquisa de consumo da Smart Communications nas Filipinas descobriu que os potenciais usuários de celular queriam usá-lo não somente para entretenimento e lazer, mas também para fins práticos e para economizar dinheiro. Um telefone reduziria a necessidade de viajar para vilarejos ou cidades adjacentes a fim de encontrar trabalho ou checar os preços de mercado de produtos agrícolas. Elas poderiam enviar uma mensagem de texto para um potencial empregador de um vilarejo próximo, por menos do que um décimo do custo de viajar até lá em transporte público, assim como usar o telefone para procurar orientação médica ou chamar um médico.

Uma das maiores barreiras para o crescimento do mercado haviam sido os altos custos dos aparelhos celulares. Poucos consumidores de baixa renda tinham economias ou receitas suficientes para se qualificar para celulares subsidiados. No entanto, desde 2001, aparelhos relativamente baratos, muitos deles de segunda mão, têm inundado o mercado. Outra barreira era a relutância das lojas sari-sari em armazenar os cartões pré-pagos, devido a custos com estoque e preocupações com segurança, mas a introdução da tecnologia over-the-air e a fixação de preço baseada em pequenas unidades de tempo removeram esse obstáculo. A Smart tomou providências para assegurar que as lojas pudessem entrar facilmente no negócio dos telefones celulares.

Tudo de que elas precisavam era uma conta bancária, um aparelho com compatibilidade de comunicação com o sistema global, o cartão inteligente certo (custando menos de US$ 2) e uma carga inicial de saldo levemente maior do que US$ 5. Em poucos meses, centenas de milhares de lojistas tinham assinado uma parceria com a Smart, permitindo à empresa consolidar extensa presença no varejo. Os lojistas ganhavam uma comissão de 15% sobre as vendas e, para muitos deles, a receita que ganharam vendendo minutos over-the-air rapidamente tornou-se a maior parte de seu negócio. No final de 2006, a Smart tinha mais de 600 mil revendedores, quase 90% dos quais microempresas ou revendedores independentes, como estudantes e donas de casa. Sua participação no mercado cresceu 68%.

Availability e awareness: como lidar com questões de cadeia de fornecimento e exposição

Assegurar a disponibilidade de produtos e serviços e a comercialização é um dos aspectos críticos em atender consumidores de baixa renda em mercados em desenvolvimento. Neles, isso freqüentemente significa estabelecer canais de distribuição quando não há nenhum e aprender a gerar demanda de mercado. Como os esforços da Tata em construir e comercializar um automóvel barato ilustram, produzir, entregar e distribuir produtos ou serviços pode ser uma tarefa complexa.

Os consumidores de baixa renda da Índia, por exemplo, moram em mais de 600 mil vilarejos espalhados pelo país. Em muitas regiões, as estradas são pouco mais do que trilhas sulcadas na lama, que podem sumir pela força da água na época das monções ou ficar bloqueadas pela neve durante semanas no inverno. Não obstante, muitas empresas de grande porte vêem os países pobres como a chave para o crescimento e lucratividade em longo prazo. A Unilever, por exemplo, espera que metade de suas vendas em 2010 venha do mundo em desenvolvimento, que eram de 32% em 2000. Outra empresa que está olhando para consumidores de baixa renda para crescer é a Eveready Industries India. Com 46% do mercado de pilhas do país e 85% do de lanternas, ela alega ter o maior sistema próprio de distribuição por vans do país, composto de mil veículos, mais de 4 mil distribuidores e 44 armazéns. Cada van visita de 50 a 60 lojas de varejo por dia e revisita os varejistas cada 15 dias para repor estoque.

De algumas maneiras, o modelo de vendas por microfranquia e de distribuição que a Avon Products criou, décadas atrás, nos Estados Unidos e em outros países desenvolvidos é idealmente adequado para os mercados em desenvolvimento. Prova disso é o Brasil, onde as vendedoras da Avon viajam pelo Amazonas e seus afluentes em balsas, pequenos barcos e canoas, para atender comunidades isoladas. Ao superarem barreiras de distribuição em comunidades muito distantes, as vendedoras ajudaram a impulsionar a empresa para uma posição de liderança no mercado de cosméticos brasileiro, a despeito de um ambiente econômico difícil.

Na Índia, a Hindustan Unilever está criando um modelo de distribuição de vizinho a vizinho parecido, treinando as mulheres locais para vender xampus, detergentes e outros produtos de saúde e higiene, porta a porta.

Além dos desafios de distribuição, as empresas freqüentemente enfrentam questões básicas de exposição: como atingir os consumidores potenciais que não estão familiarizados com seus produtos e que não podem ser atingidos com publicidade convencional.

Para superar a carência de penetração da TV em muitas áreas rurais das Filipinas, a Smart investiu pesadamente em cartazes nas estradas e materiais de marketing de ponto-de-venda desenvolvidos especificamente para lojas sari-sari e pagou por publicidade nas laterais dos jeepneys (veículos que são o meio de transporte público mais difundido) e dos táxis de três rodas. Também apostou no treinamento de revendedores; seus maiores representantes nacionais foram incentivados a treinar sub-revendedores e outros abaixo deles na rede de distribuição. Além disso, seus representantes visitaram universidades, onde deram seminários sobre como se tornar revendedor; em troca de ter sido aceita no campus, a empresa patrocinou atividades e eventos. Por fim, a Smart promoveu outros eventos de recrutamento de revendedores nas comunidades de baixa renda de todo o país.


Fonte:

Estudo publicado na © MIT Sloan Management Review por Jamie Anderson, que é professor da European School of Management and Technology, sediada em Berlim, Alemanha. O co-autor Costas Markides é professor de liderança estratégica da London Business School. Artigo traduzido e publicado no Brasil pela revista HSM