A segunda revolução da Apple

Reportagem publicada na HSM Management conta como Steve Jobs voltou à direção da Apple e apostou em um novo objeto de culto tão precursor como o Macintosh para que sua empresa recupere a liderança do mercado. 

Há pelo menos duas atitudes que caracterizam Steve Jobs: nunca busca o caminho mais fácil e nunca evita as grandes decisões. Demonstrou possuir essas duas qualidades em 1976, quando, aos 21 anos, em uma garagem perdida no então incipiente Vale do Silício, com seu amigo Steve Wozniak, de 26 anos, criou a Apple Computer. O objetivo era fácil de expressar, mas quase impossível de alcançar: eles queriam que a empresa se diferenciasse de tudo que já era conhecido.

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A Apple foi posicionando-se como fabricante de um tipo muito particular de computador pessoal, sob a marca própria Macintosh, caracterizado pelo design funcional e por um software superior ao do mercado, embora durante anos apenas compatível com o universo Apple. Isso colocou seus produtos em um lugar tão seleto quanto isolado.

O consumidor típico do Macintosh ainda se concentra nos ambientes profi ssionais do design (gráfico, de imagem e de som) e da educação e se estende para vários milhões de indivíduos apaixonados por sua funcionalidade e estética.

Especialistas como o professor David Yoffi e, da Harvard Business School, estimam em não muito mais do que 8 milhões a atual base de usuários reais de Macintosh. Isso diz muito sobre seu posicionamento premium em um mercado mundial que contabiliza cerca de 400 milhões de consumidores de equipamentos baseados no sistema operacional Windows, da Microsoft, a arqui-rival da Apple.

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Assim, ter conseguido diferenciar-se de tudo o que existia rendeu à Apple reconhecimento e prêmios, mas esse caminho a levou também a criar produtos para uma elite, inacessíveis à maioria dos consumidores. O sonho de competir com base no preço e chegar ao consumidor de massa ainda não foi alcançado.

Em 1985, Steve Jobs deixou a empresa, que passou a ser comandada por John Sculley, ex-presidente da PepsiCo. Contudo, 11 anos depois ele voltou, em um momento em que a Apple compreendia que devia modernizar-se e flexibilizar suas propostas, pois já não era mais possível apoiar-se exclusivamente no que seu fundador chama de “estratégia BMW” (um produto exclusivo e caro para um público limitado). Talvez também fosse hora de acelerar a inevitável convergência para o mundo dominado pelos softwares da Microsoft e pelos grandes fabricantes de computadores pessoais que utilizam o Windows.

Enquanto essa decisão termina de amadurecer, a entrada da Apple no mercado da música digital abre uma série de perspectivas, tão arriscadas quanto interessantes –bem ao feitio de Steve Jobs. No entanto, para avaliar a situação atual da empresa, é necessário percorrer um pouco de sua história.

Dos primórdios até o Mac

Em março de 1976, um Jobs quase menino, que trabalhava na empresa de videogames Atari, e Steve Wozniak, um apaixonado pela eletrônica que aos 13 anos havia desenhado uma calculadora baseada em transistores e na época trabalhava na Hewlett-Packard, terminaram de construir, na garagem da casa de Jobs, em Los Altos, Califórnia, um primeiro esboço de computador, o Apple I, que mais tarde aperfeiçoariam acrescentando um teclado, uma fonte de alimentação e um drive de disco flexível para armazenar dados (Apple II).

Jobs sempre fora fascinado pelo quase ilimitado potencial dos artefatos eletrônicos e lhe atraía a possibilidade de dar a suas idéias inovadoras uma utilidade prática. Em abril daquele ano, os sócios tomaram uma decisão que mudaria suas vidas e marcaria o caminho de todo um setor de atividade: fundaram a Apple Computer.

Cada sócio levou para a nova empresa o que melhor sabia fazer: Wozniak, o gênio e o talento para a engenharia; Jobs, o carisma e visão empresarial. Assim, foi Jobs o encarregado de estabelecer o relacionamento com fornecedores e intermediários, tanto para comprar materiais e componentes como para impulsionar as vendas dos primeiros produtos da Apple. Artífice e visionário, ele convenceu Wozniak, gênio criador, do potencial comercial que significava a montagem e a venda de pequenas máquinas para aficionados. Ron Wayne, colega de Jobs na Atari, foi o terceiro ator nesse empreendimento, embora sua parte tenha sido menor –ele logo deixou a empresa. No entanto, segundo Jeffrey S. Young e William L. Simon, autores do livro iCon, biografia “não autorizada” de Steve Jobs publicada recentemente pela editora John Wiley & Sons, nenhum dos integrantes do grupo inicial, nem sequer Jobs, via a Apple como um grande empreendimento.

Para financiar a produção de seus primeiros 50 circuitos Apple I, Jobs vendeu sua caminhonete Volkswagen, e Wozniak sua calculadora HP-65. Em julho de 1976, o produto, vendido por US$ 666,60, destinava-se a um público que não se diferenciava muito dos criadores da empresa: entusiastas da informática, entre os quais vários futuros empreendedores do Vale do Silício. A seriedade dedicada à parte comercial do negócio ficou evidente com a antecipada contratação da Regis McKenna Advertising, agência que criou o famoso logotipo da maçã mordida com as cores do arco-íris, um dos símbolos de marca mais reconhecidos da história mundial. Sua autoria é atribuída ao diretor de arte Rob Janoff.

No ano seguinte, a Apple Computer passou a ser uma sociedade anônima. Mike Markkula, capitalista de risco, tornou-se o terceiro sócio e diretor da empresa, trazendo para a presidência executiva um gestor de talento: Michael Scott. Foram anos de rápido crescimento. A garagem dos pais adotivos de Jobs –sua mãe biológica não o criou– ficou atrás na história, e a empresa se fixou na cidade californiana de Cupertino.

O novo modelo, Apple II, muito aperfeiçoado em relação ao primeiro, foi apresentado ao mercado. Com teclado e caixa atraentes, aproximava-se bastante do conceito atual de microcomputador e fez sucesso entre os usuários. A Apple Computer já demonstrava sua capacidade de gerar lucros. O gênio criador de Wozniak e a visão de Jobs haviam iniciado a revolução dos microcomputadores. “Não mais máquinas de escrever!”, exclamava o presidente, Mike Scott. O Apple III, com um novo sistema operacional e novas características, foi lançado em setembro de 1980 na National Computer Conference, importante evento desse setor de atividade. Em dezembro daquele ano, a companhia se lançou na bolsa. Um total de 4,6 milhões de ações foi vendido a um valor unitário de US$ 22 no período de uma hora, o que transformou essa oferta pública inicial de ações (IPO) na mais importante da história depois da Ford Motor, em 1956. Steve Jobs entrava na lista de empreendedores norte-americanos milionários.

Em 1981, Markkula substituiu Scott na presidência executiva. No mesmo ano, a International Business Machines (IBM) começou a concorrer com a Apple no terreno dos microcomputadores ao lançar seu primeiro PC, com processador da Intel e sistema operacional DOS (Disk Operating System), da Microsoft, empresa criada na mesma época que a Apple, que então tinha apenas 30 funcionários. Embora já tivesse alcançado grande popularidade, a Apple deveria enfrentar agora uma concorrência poderosa. A comunicação da empresa havia ficado nas mãos da Chiat/Day Advertising, depois que essa importante agência de publicidade adquiriu a Regis McKenna. Uma página completa do Wall Street Journal, assinada pela Apple, saudou “a sério” a entrada da nova rival em campo: “Welcome IBM. Seriously” (“Bem-vinda, IBM. De verdade”).

O modelo Lisa, lançado em 1983 por um preço próximo de US$ 10 mil, foi um falido experimento em antecipação ao Macintosh, o produto-símbolo que resumiria a identidade e a filosofia da Apple: inovação, diferenciação, design, exclusividade. A interface gráfica do equipamento da Apple, com arquivos representados por ícones e a possibilidade de transportar arquivos com um simples clique nesses ícones, foi algo que enlouqueceu as pessoas da Microsoft por vários e longos anos. Mas ela só viria mais tarde.

O processo que desembocou no Macintosh não foi tão auspicioso e abriu caminho para a saída de Steve Jobs, que seria afastado pela direção para dar lugar a John Sculley –executivo experiente, embora sem antecedentes em tecnologia–, convocado para liderar o salto da empresa em direção à maturidade. A intenção original da diretoria era que ambos partilhassem a direção, mas a convivência não foi como se esperava. Jobs era acusado por sua insistência no desenvolvimento de produtos que, por seus custos, teriam de ser vendidos a preços proibitivos. Também era criticado por sua tendência ao confronto, seu individualismo e por alimentar o culto a sua pessoa. Para alguns diretores, Jobs vivia fechado na própria realidade e não tinha consciência dos problemas que isso causava para a empresa.

O surgimento do Mac

Menos de um ano depois da chegada de Sculley ao topo, e enquanto Jobs ainda fazia parte da empresa, a Apple lançou, com estardalhaço, o que viria a ser seu produto-estrela: o microcomputador Macintosh. O primeiro Mac foi introduzido no mercado em janeiro 1984, em um ato de marketing magistral. Dois dias antes do lançamento, durante a transmissão do Super Bowl (final do campeonato de futebol americano), o acontecimento esportivo mais popular dos Estados Unidos, foi veiculado o celebrado comercial “1984”.

O filme associava a computação pessoal –monopolizada desde 1981 pela IBM e seus PCs com sistema operacional da Microsoft– ao pesadelo imaginado pelo genial escritor britânico George Orwell em seu livro homônimo. “Em 24 de janeiro a Apple Computer lançará o Macintosh. E você entenderá por que 1984 não será como 1984”, era a mensagem de um dos melhores anúncios da história da publicidade. Pela primeira vez, o lançamento de um computador virou notícia. E também foi o primeiro computador que, por sua simplicidade (em grande parte, devido à interface gráfica), podia ser utilizado por qualquer pessoa, diferentemente do hermético DOS.

Com esse produto não apenas inovador, mas também revolucionário, porque desafiou a essência dos microcomputadores até então, a Apple sentiu que estava mudando o rumo da história. Uma frase de Jobs durante a apresentação oficial do novo produto sublinhou outra grande vantagem competitiva do Mac: “Nunca confie num computador que você não possa levantar”. Era uma irônica alusão ao peso e às dimensões dos PCs da IBM.

Além de suas vantagens e outras inovações –como o mouse e um design integrado que requeria menos cabos para a instalação–, o grande valor do Mac se originava na aplicação e adaptação de avanços criados por outras empresas, como a interface gráfica, desenvolvida pela Xerox em 1973.

No entanto, esse produto revolucionário não conseguiu romper o círculo vicioso da Apple: seu preço o tornava inacessível ao mercado de massa. A qualidade e a diferenciação não bastavam. Segundo Young e Simon, o Macintosh não deixava de ser uma máquina para yuppies.

Em 1985, a Microsoft lançou o Windows, sua própria interface gráfica, para computadores IBM. O Windows utilizava muitos dos elementos do sistema operacional do Macintosh, o que levou a uma longa batalha judicial entre a Apple e a Microsoft, que terminou com um acordo. Ainda que essa primeira versão do Windows fosse tecnologicamente inferior, um “clone” de microcomputador equipado com Windows podia ser adquirido a um preço menor.

Além disso, a natureza aberta da plataforma PC fazia com que sempre houvesse mais opções de software disponível para o Windows. Apesar dessa desvantagem, e de outras derivadas de sua arquitetura fechada, o Macintosh teve um sucesso importante em termos de reconhecimento de valor do produto e de imagem da marca, que, no entanto, não se traduziu em participação no mercado. O que a empresa não conseguia era criar uma versão de Mac capaz de competir comercialmente com os PCs.

A gestão de Sculley

Em abril de 1985, a direção da Apple pediu que Jobs se afastasse. O delicado equilíbrio no topo do poder inclinava-se bruscamente para Sculley, cujo talento como gestor lhe permitia disfarçar a inexperiência no campo da tecnologia. Durante sua gestão, a Apple passou por profunda reestruturação, orientada para a redução de custos. Isso permitiu baixar em alguma medida os preços do Mac, mas à custa de sucessivos cortes de pessoal. A meta do presidente executivo era basear as receitas da Apple no software e nos serviços, mais que no hardware. Apesar disso, foram lançados alguns equipamentos, nem sempre felizes, entre eles a linha de notebooks, aberta com o não tão portátil Mac Portable, de 7 quilos, significativamente melhorado em 1991, com o PowerBook 100 e os modelos que o seguiram.

Ainda em 1991, Sculley rompeu uma tradição da Apple –o mandamento de Jobs “Não à compatibilidade”– ao assinar um acordo com a IBM para o desenvolvimento conjunto de software e hardware. Dois anos depois, em junho de 1993, renunciou ao cargo de forma abrupta, com a empresa ainda não totalmente reestruturada.

Do exílio para a “refundação”

Depois que o afastaram da Apple, Steve Jobs fundou duas empresas: a de animação computadorizada Pixar (de Toy Story) e a de informática NeXT. Em 1996, a Apple Computer adquiriu a NeXT e reincorporou Steve, para quem entregou a direção da empresa em julho de 1997. Isso aconteceu depois da saída do presidente executivo Gil Amelio, tecnólogo que havia sucedido o alemão Michael Spindler –chamado de “Diesel”, por sua enorme capacidade de trabalho–, o homem que substituiu Sculley. Quando Jobs voltou à Apple, a companhia perdia mercado e tinha sérios problemas financeiros.

Os autores do livro iCon definem seu retorno como “o maior segundo ato na história dos negócios”. Durante seu exílio forçado, o fundador da Apple passou por uma grande mudança, da qual saiu com mais maturidade e sensibilidade. O jovem gênio, para muitos arrogante, impulsivo e individualista, tinha aprendido com seus fracassos. Como líder de uma empresa baseada na inovação, o novo Jobs –talentoso como sempre, mas agora mais maduro e humilde– teve outra de suas grandes idéias e renovou não apenas a estrutura de negócios, mas também a comunicação da marca, até então associada às elites (educativa, do design etc.) e caracterizada por seus preços premium.

Ele se propôs transformá-la em uma marca desejada, símbolo dos novos tempos. Enquanto empreende esse novo esforço, o maior desafio de Jobs não é muito diferente do anterior: fazer crescer o negócio, em toda sua potencialidade. Para isso, pretende manter-se fiel ao conceito “Think Different” (Pense Diferente), que ficou famoso em uma inesquecível campanha publicitária identificando a Apple com pioneiros como John Lennon, Albert Einstein, Neil Armstrong e Alfred Hitchcock.

Um dos primeiros resultados da nova era Jobs foi o iMac, cujo design revolucionário ficou a cargo de Jonathan Ive, vice-presidente sênior de design da Apple. Algumas de suas características: carcaça semitransparente em cores opcionais, preço abaixo dos padrões da marca e uma aposta firme na internet, pois oferecia conexão automática com a web e não possuía entrada para disquete (com isso se descartavam, na versão básica, os suportes físicos para transladar a informação).

Ao mesmo tempo, a Apple facilitou a convergência entre suas máquinas e os PCs, que hoje partilham aplicações e permitem um fluente intercâmbio de informações e arquivos. Outro lançamento importante foi o iBook, versão notebook do iMac.

Novos horizontes

O grande salto em direção ao objetivo de se tornar um objeto do desejo se materializou com a entrada da empresa no mercado da música digital. Jobs o fez por meio de um objeto fetiche que apresentou no final de 2001: o iPod, reprodutor de música portátil com tela de cristal líquido, interface de usuário muito simples e grande capacidade (inicialmente, 5 GB), que permite armazenar perto de mil músicas. Uma inteligente campanha de marketing posicionou rapidamente o iPod como um novo ícone cultural. Dois colaboradores-chave do chefe da Apple –Phil Schiller, diretor mundial de marketing de produto, e Jon Rubinstein, diretor da divisão iPod– tiveram muito a ver com esse sucesso.

A jogada de Jobs cumpriu seu propósito de inserir a Apple em um mercado existente, mas pouco explorado, com um produto diferente e acessível. Como passo complementar, criou em 2003 a loja virtual de música iTunes, que, apesar de cobrar pelo serviço, gerou 2 milhões de downloads nos primeiros 16 dias e se transformou na empresa líder de seu tipo em nível global, com 70% de participação no negócio de download legal de música. Representativo dessa espetacular entrada da Apple no nicho da música digital é o fato de os produtos e serviços oferecidos não serem novidade –tratava-se de um mercado já existente. O que a empresa conseguiu, graças a Jobs, foi ver o espaço não aproveitado que havia no mercado.

Em junho de 2005, diante de um auditório de profissionais de desenvolvimento de produtos , Jobs informou que a participação da Apple no mercado de dispositivos de música digital portátil era de 76%. A estratégia da Apple está orientada para a convergência de tecnologias. Com um golpe de efeito muito ao estilo de Jobs, a empresa apresentou em outubro um novo modelo de iPod com tela de 2,5 polegadas que, em sua versão de maior capacidade, permite armazenar 15 mil músicas, 25 mil fotos ou 150 horas de vídeo. No mesmo evento apresentou o iMac G5, mais plano que os anteriores, e uma versão atualizada do iTunes, que permite comprar vídeos musicais, programas de TV e filmes.

“Começa algo muito grande”, disse Jobs. “Estamos dando o primeiro passo, que é o mais difícil.” Enquanto inventa e aperfeiçoa novos objetos de culto e os cerca de uma comunidade fiel, a Apple parece confiar no novo mercado para tirar o negócio da informática de seu legado. Alguns especulam quanto a uma virada total da empresa para a convergência de tecnologias. No entanto, ninguém sabe com certeza qual o coelho que Jobs vai tirar da cartola. A resposta está com o homem que inventou duas vezes a Apple.


Fonte: A reportagem é de Laura Babini e foi publicada na revista HSM Management