O laboratório de inovação em gestão

Nesta entrevista, Gary Hamel, um dos mais conceituados especialistas em estratégia e gestão da atualidade, relata a experiência pioneira de testar novas abordagens gerenciais na London Business School.

A pedra angular do pensamento de Gary Hamel é a importância vital da inovação. “Defendo a teoria de que, quanto maiores forem as dificuldades econômicas, maior a tentação de cortar despesas, mas é nesses momentos que a inovação radical se torna o único modo de avançar. Em um mundo descontínuo, apenas a inovação radical conseguirá criar riquezas novas. Apesar do naufrágio das empresas ponto.com, basta analisar o que aconteceu na última década para concluir que a maioria das recentes riquezas foi criada por estreantes no setor ou por empresas jovens. A única conclusão a que se pode chegar é que a inovação move a criação de riquezas”, afirma Hamel.

Não há nada de novo nessa teoria, é verdade, e já há alguns anos Hamel (e outros estudiosos) vem defendendo a causa da inovação. De certos aspectos, parece que os executivos assimilaram a mensagem, pois eles sabem que não é possível fazer sempre as mesmas coisas. Em geral, as organizações e seus líderes consideram a necessidade de inovação uma prioridade clara. No entanto, ainda que o discurso seja convincente, raras vezes a retórica é acompanhada de alguma iniciativa.

Segundo Hamel, o problema tem duas raízes principais: o fato de que os funcionários menos graduados na hierarquia das empresas não foram treinados para o pensamento inovador e a ausência de processos –ou de mecanismos de apoio– para estimular a inovação.

Hamel compara a atual visão da inovação com o conceito de qualidade que predominava no mundo dos negócios na década de 1970. Naquela época, as pessoas reconheciam a importância da qualidade, mas desconheciam os processos ou sistemas que permitiriam sua concretização. Os processos e sistemas, como a regra de Pareto (80/20) e os círculos de qualidade, entre outros (que depois ficariam conhecidos como Gestão da Qualidade Total), estavam sendo amplamente elaborados no Japão.

Esse pensamento levou Hamel a pesquisar, em parceria com Julian Birkinshaw, da London Business School, a inovação das idéias no mundo dos negócios, e hoje eles se dedicam ao desenvolvimento de um “laboratório de inovação em gestão”. Os dois lastimam o fato de que os pesquisadores tradicionalmente deram relativamente pouca atenção à dinâmica da inovação em gestão (os processos que permitem a evolução e, talvez, o avanço no decorrer do tempo) das práticas e princípios.

Ainda que muitos marcos da inovação em gestão sejam conhecidos até por estudantes de administração (como o desenvolvimento do moderno laboratório de pesquisa da General Electric ou a criação da organização multidivisional pela General Motors), não existe um modelo geral de inovação em gestão como processo dinâmico.

O conceito de inovação tem significados distintos para cada pessoa, e por isso pode ser interessante começar com uma definição do termo. Como o sr. define “inovação em gestão”?

A inovação em gestão é a inovação dos princípios e processos gerenciais que de fato transformam as práticas das tarefas dos executivos e as maneiras como elas são realizadas.

É diferente da inovação operacional, que está relacionada com o modo de execução do trabalho que transforma inputs em outputs. É muito fácil diferenciar a inovação em gestão da inovação tecnológica ou de produto, mas não distingui-la da inovação operacional.

O sr. pode explicar melhor essa diferença?

Se pensarmos em uma empresa como um conjunto de processos que transformam inputs em outputs, como a transformação do trabalho e do capital em produtos e serviços, por exemplo, veremos que os processos comerciais regem o fluxo de trabalho. Aqui entram os sistemas de logística, o processamento de pedidos, os call centers, o atendimento ao cliente e a produção. De forma geral, meu interesse por inovação não se limita a essa esfera. Ao redor do trabalho de transformação de inputs em outputs, porém, estão as demais atribuições dos executivos: utilização dos recursos, estabelecimento de prioridades, constituição de equipes, criação de relacionamentos e formação de parcerias.

O enxuto sistema de produção da Toyota é um bom exemplo. A princípio, poderíamos afirmar que a produção “sem gorduras” constitui uma inovação operacional. Mas o que se observa para além das mudanças operacionais é o radical conceito de gestão de que poderia haver um retorno sobre o investimento positivo a partir do uso de habilidades de solução de problemas dos funcionários.

Voltando algumas décadas, vemos que, quando era identificado um problema de qualidade ou de eficiência, as empresas recorriam a equipes de especialistas, que analisavam o sistema e reorganizavam os procedimentos operacionais básicos. Aos funcionários cabia apenas adotar essas novas diretrizes. A idéia de que uma organização poderia passar aos próprios colaboradores a responsabilidade pela promoção das mudanças, de que seria possível ensinar pessoas com 10 ou 12 anos de formação a lidar com controles estatísticos de processos era impensável.

Assim, o que à primeira vista parece ser uma simples inovação operacional na verdade tem sua origem na adoção de um princípio de gestão radicalmente novo.

O sr. citou a Toyota, e os executivos sabem o que ela e outras empresas altamente inovadoras de fato estão fazendo, mas muitas companhias permanecem bastante refratárias aos processos inovadores. Como é possível estimular a inovação em gestão dentro de uma empresa?

Em uma organização de grande porte, não se podem mudar as ações dos executivos de modo direto –isso só é possível por meio da transformação dos processos que regem o trabalho desses profissionais. Vejamos o exemplo da fabricante de eletrodomésticos norte-americana Whirlpool. A empresa treinou milhares de pessoas para que se tornassem profissionais inovadores, os quais têm muitas idéias novas excelentes.

No entanto, surgiu um desafio: aqueles que regem as marcas essenciais, como Kitchen Aid, Whirlpool e outras, não estão muito interessados nessa inovação.

Mas como as pessoas podem “não estar muito interessadas em inovação”?

Elas não querem colocar recursos de produção ou de marketing nessas idéias novas. Como é quase inevitável, é mais fácil para elas ganhar mais um dólar fazendo exatamente o que já fazem. A Whirlpool reconheceu que, ao mesmo tempo que criou uma fonte de idéias inovadoras, não montou uma receptividade correspondente pelos executivos seniores para alimentar essas idéias.

Por isso ela implantou uma série de medidas para remediar a situação, como a reserva de 15% de seu orçamento para projetos realmente inovadores.

E quais foram as conseqüências?

A empresa conseguiu mandar uma mensagem claríssima para seus executivos: quem não trouxer projetos inovadores ficará sem recursos. O mercado financeiro, a City, Wall Street –todos exigem que a Whirlpool atinja determinados níveis de crescimento e de margens de lucro, além de usar outros sistemas de aferição de desempenho. Então por que ela não deveria usar uma métrica para estimular seus executivos a desenvolver práticas gerenciais inovadoras?

Qual a importância da inovação em gestão?

Ao analisarmos um século da história industrial, vemos que tradicionalmente foi a inovação em gestão que permitiu que as empresas atingissem novos patamares de desempenho –mais do que qualquer outro tipo de inovação. O desafio está na implantação da inovação em gestão dentro das empresas. Com freqüência, a tecnologia necessária para fazer coisas novas já existe bem antes da mudança dos processos gerenciais que vão permitir o uso dessa tecnologia.

Quer dizer que é preciso certo tempo para que a inovação em gestão “pegue”?

Vou citar como exemplo os programas de código aberto [desenvolvimento de produtos e projetos especiais baseados em software livre], que se tornaram possíveis graças à tecnologia das comunicações, à tecnologia colaborativa. As tecnologias facilitam a colaboração entre as pessoas, e grande parte das utilizadas atualmente, como a internet ou o Lotus notes [sistema de trabalho colaborativo e e-mail], já existe há algum tempo. Apesar da disponibilidade de tecnologias, pouco foi feito para mudar o modo como o poder e a informação realmente se distribuem em muitas empresas. A maioria das organizações explora a internet aproveitando as práticas que já existem, trazendo mais informação para o centro, por exemplo. Elas comemoram o fato de haver um “painel de instrumentos” digital global. Hoje, uma companhia consegue informar quantos widgets [pequenos programas que rodam no desktop do internauta] foram vendidos em Pyongyang no dia anterior.

Então as empresas usam novas tecnologias para reforçar antigos hábitos gerenciais?

Sim. Algumas vezes, porém, uma empresa, como o Google, ou um movimento, como o Open Source Iniciative, quebram esses hábitos e, por meio da inovação em gestão, usam a tecnologia para permitir outro modo de execução dos processos.

Ao pesquisar a história do gerenciamento, que importantes inovações da gestão o sr. identificou?

Uma das primeiras foi o orçamento de capital. Acredito que esse processo surgiu na fabricante de produtos químicos DuPont. Com o crescimento da estrutura, a empresa passou a atuar em outros setores e encontrou um problema: como fazer avaliações racionais entre projetos de atividades distintas, com ritmos econômicos e tecnologias diferentes.

O processo de orçamento de capital foi a solução para criar uma matemática comum aplicável a projetos tão diversos. Embora essa solução tivesse seus limites (é claro que, ao reduzir operações complexas a uma aritmética simples, sempre se perde muita riqueza), eu considero esse um passo inicial extraordinário.

O gerenciamento de marcas também seria uma inovação em gestão?

Certamente. Em 1929, a Procter & Gamble já estava organizando seu conhecimento sobre gerenciamento da marca. A empresa percebeu que, ao passar para uma sociedade de consumo de massa, a simples capacidade de fabricar um produto e distribuí-lo teria cada vez menos significado para o consumidor. Até então, conseguir fazer algo com 99,9% de acerto já era uma maravilha.

O que a Procter & Gamble conseguiu ver foi que cada vez mais a concorrência se apropriaria dos atributos físicos do produto e da capacidade de fazê-lo chegar ao cliente, além de outros aspectos intangíveis. O que no passado era gerenciamento de marca hoje se divide em gestão de imagem corporativa, gestão de propriedade intelectual etc. Mas o desafio de como criar valor a partir de aspectos intangíveis e não-físicos começou com a Procter & Gamble.

Ela foi a pioneira, embora eu suspeite que a Unilever possa ter algo a dizer a respeito. Trata-se de uma inovação imensa, porque até então se vivia em um mundo exclusivamente “físico” e ninguém tinha idéia sobre como criar valor a partir de coisas que não fossem totalmente palpáveis.

Algum outro exemplo?

Há muitos outros. Um que antecede os dois mencionados é a invenção do laboratório industrial moderno. Existem alguns antecedentes na Alemanha, mas a maioria teve início com Edison na General Electric (GE). Nesse caso, o problema estava em como atribuir alguma disciplina aos desordenados processos da ciência.

E como administrar o inadministrável? A GE descobriu a resposta, ou pelo menos criou vários padrões para isso. Antes da Segunda Guerra Mundial, a empresa detinha mais da metade das patentes industriais nos Estados Unidos. Estamos falando de um ponto muito importante do desenvolvimento da GE, um passo na trilha que levou a companhia à condição de potência industrial.

O sr. afirmou que os cursos de MBA não têm o código-fonte para as próprias crenças administrativas. O que se deve dar a esses cursos para que eles adquiram a perspectiva necessária?

Acredito que, para começar, é preciso proporcionar às pessoas uma compreensão do contexto histórico no qual nossas convicções gerenciais foram formadas e desenvolvidas.

Mas isso não acontece hoje?

O que eu acho surpreendente é que, pela impressão que tenho (e sem dúvida alguém se manifestará se eu estiver errado), poucas escolas de administração ensinam história da gestão aos alunos. Nas outras disciplinas (história, ciências sociais, lingüística etc.), passamos a última década desmontando todas as certezas até não existir mais nenhuma base inabalável. De certo modo, tudo foi desfeito.

Mas as escolas de administração, não sei por quê, parecem ter passado ao largo desse processo.

O sr. pode dar algum exemplo?

Cito como exemplo de inovação em gestão a famosa decisão de Henry Ford de pagar aos operários de sua fábrica a grande soma de US$ 5 por dia (o que significou mais do que dobrar o salário de um dia para o outro). Houve um imenso debate, tanto dentro da Ford antes da tomada da decisão como em todo o setor automobilístico norte-americano, sobre se a iniciativa fazia sentido. Isso aconteceu porque na época a crença era a de que as pessoas trabalhariam apenas os dias que bastassem para ganhar a soma necessária e depois iriam embora. Muitos achavam que lá pela quarta-feira não haveria mais ninguém nas fábricas.

E essas idéias eram infundadas?

De certo modo, essa crença não tinha lógica. É fato que na agricultura, depois de fazer o que é necessário, resta pouco trabalho. Após a colheita do milho ou o plantio das verduras, ninguém continua na labuta, porque não há muitas tarefas a realizar. E, naquela época, mesmo que a pessoa tivesse acumulado riquezas, não existia muito mais o que comprar. Entretanto, a chegada do mundo industrial gerou imensa oferta de produtos e serviços, e não faltam novos lugares para gastar o dinheiro.

Há uma revolução que envolve a elevação das expectativas e dos níveis de consumo. É interessante notar a dificuldade das pessoas em escapar do que elas consideravam uma característica fundamental da natureza humana (que na verdade revelou-se apenas um traço daquele período) e em fugir do modo de organização do trabalho que vigorava até a era industrial. Por isso, o que precisamos questionar hoje é quantas de nossas crenças são igualmente determinadas pelo contexto.

Então o sr. acredita que somos influenciados por preconceitos?

Acredito que muito daquilo em que acreditamos seja correto, mas não inevitável. Um dos cuidados que devemos tomar com esses livros que reúnem as melhores práticas é não transformar descrições em receitas. Senão, ocorre o seguinte: se algo não foi feito até agora, não pode ser feito. Caso a maioria das pessoas acreditasse nisso, não sairíamos do lugar. Por isso, acho que precisamos compreender as raízes históricas das modernas práticas de gestão, identificar quais certezas estão arraigadas em nossos processos gerenciais (as mudanças começam de cima para baixo; o que move as pessoas é a possibilidade de recompensas; a hierarquia é o modo mais eficiente para coordenar o trabalho de um grupo heterogêneo; o objetivo da estratégia é o controle dos ativos estratégicos), desafiar essas certezas e discuti-las. Não tenho dúvidas de que existem muitas “certezas” que, em um curso de MBA, nunca são discutidas ou sequer abordadas.

O sr. poderia falar mais sobre o laboratório de inovação em gestão?

O laboratório de inovação em gestão é um experimento por si só. Para abordar o assunto de forma simples, digo que existem duas possibilidades. A primeira é que podemos criar uma metodologia que nos permita maior objetividade no que se refere à inovação em gestão e à intensa aceleração da evolução do gerenciamento propriamente dito. A segunda hipótese é que podemos ajudar as empresas a aprender a fazer experiências com princípios e processos gerenciais novos sem comprometer seu sucesso. As companhias não testam em laboratório um produto novo ou uma tecnologia em desenvolvimento? Então, podemos transportar a mesma mentalidade “experimentalista” para o campo da gestão.

Está sendo montado um laboratório físico?

A London Business School nos dedicou um espaço específico, inaugurado este ano. Agora contamos com um ambiente criado para estimular a renovação da gestão, fomentar o questionamento, estimular o aprendizado por meio de outras disciplinas e permitir de fato uma parceria experimental estreita entre o que eu chamo de “inventores acadêmicos” e organizações progressistas.


Fonte: Revista HSM Management e Business Strategy Review. A entrevista é da colaboradora Des Dearlove