Ghemawat X Friedman: o mundo é plano mesmo?

Quem afirma, como Thomas Friedman, que o mundo é plano e ficou achatado, sugere que as distâncias e as fronteiras, e mesmo as diferenças, perdem importância. No entanto, dados como os apontados neste artigo por Pankaj Ghemawat revelam um nível de internacionalização baixo

Algumas metáforas sobre os avanços tecnológicos e as mudanças que geram no estilo de vida se transformam, após um tempo, em parte da linguagem do cotidiano. Sintetizam, em poucas palavras, um conjunto de fenômenos. É o que ocorreu nos anos 70 com a “aldeia global”, por exemplo, que aludia às mudanças sociais, culturais e econômicas que aconteceriam num planeta conectado até lugares remotos. Mais recente é “o mundo é plano”, metáfora cunhada pelo jornalista Thomas Friedman para se referir às conseqüências da globalização.

De acordo com Friedman, desde o ano 2000 entramos em uma era completamente nova, na qual o mundo deixou de ser “pequeno” (ele estaria diminuindo gradativamente desde os tempos de Colombo) para se tornar “ultrapequeno e achatado”. O motor dessa transformação é a capacidade dos indivíduos de colaborar e competir em escala mundial, que, com uma rede de fibra óptica global e todo tipo de novas aplicações de software, transforma cada ser humano em “vizinho” dos outros.

Em seu best-seller O Mundo é Plano (ed. Objetiva), Friedman descreve as dez forças que teriam provocado o achatamento –desde a queda do Muro de Berlim até as práticas de terceirização, insourcing, offshoring e a nova cadeia de fornecimento.

E formula a pergunta crucial que todos deveríamos nos fazer: “Como me inserir no contexto de concorrência e oportunidades mundiais, e como posso colaborar com outros em escala mundial?”.

A premissa de Friedman ganhou rápida aceitação entre aqueles que acreditam que a distância não é obstáculo para chegar a qualquer mercado; as oportunidades se multiplicam até o infinito; os chefes se comunicam diretamente com subordinados em níveis inferiores sem precisarem atravessar os cargos intermediários, e nada impede uma empresa pequena, feito Davi moderno, de vencer os Golias corporativos. Mas nem todos compartilham sua visão.

De fato, alguns especialistas, entre eles Pankaj Ghemawat, advertem que aceitá-la induz as empresas a cometer grandes erros. “Os dados indicam que o mundo não é plano, qualquer que seja o sentido de ‘plano’ a que aludirmos”, explica ele. “Se tentarmos sugerir que a atividade econômica está distribuída de maneira uniforme em todo o planeta, está claro que não é verdade. Essa distribuição é irregular, com enormes concentrações de atividade econômica nas grandes cidades. Se a idéia é que o mundo diminuiu porque as fronteiras se apagaram, também há evidências de que não é assim.”

Números eloqüentes

De acordo com Ghemawat, a análise dinâmica dos dados reflete a inconsistência do slogan preferido dos partidários da globalização, segundo o qual “os investimentos não respeitam fronteiras”. “Em escala mundial”, afirma, “o investimento estrangeiro direto (IED) nos países tem sido menor que 10% durante o período 2003-2005, os últimos três anos de que se dispõe de estatísticas. E mais de 90% do investimento fixo continua sendo nacional.” O mesmo acontece com as patentes, as ligações telefônicas e os investimentos na bolsa, que também colocou sob a lupa, cujo grau de internacionalização está em cerca de 10%. “Há alguns indicadores econômicos da integração entre países, como os referentes ao comércio, que recentemente alcançaram valores máximos históricos”, acrescenta, “mas muitas categorias representativas da globalização sofreram um retrocesso e, ainda hoje, estão abaixo dos valores que alcançaram no período entre as duas grandes guerras mundiais.

A porcentagem de imigrantes com relação à população, por exemplo, alcançou um máximo em 1910 e nunca voltou para esse nível.” Mesmo parecendo curioso, o futebol constitui, para Ghemawat, outro excelente exemplo dos vaivéns históricos no processo de integração mundial. Suas origens remontam à Idade Média, quando os camponeses ingleses deram os primeiros pontapés em bexigas de porco. Durante o auge do Império Britânico, difundiu-se em outras latitudes, mas sua globalização retrocedeu várias casas entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, quando foram impostas restrições para a transferência internacional de jogadores. Até o final da década de 1980, na Europa Ocidental, os campeonatos limitavam a participação de jogadores estrangeiros para um máximo de um a três por time, enquanto nos países do Leste Europeu eram impostos entraves para a exportação de seus jogadores.

Essas barreiras desapareceram na década de 1990, quando pressões econômicas obrigaram vários países (como o Brasil) a adotar estratégias de venda de jogadores para o estrangeiro, mas também por obra e graça de um veredicto da Corte de Justiça européia de 1995, que levantou as restrições vinculadas à quantidade de jogadores estrangeiros em clubes daquele continente. Em 1999, o inglês Chelsea foi o primeiro clube na história da Premier League a começar um jogo sem um único nativo no campo de futebol. Em 2004 e 2005, 45% dos jogadores titulares dos times que participaram desse campeonato eram estrangeiros. De acordo com Ghemawat, o crescente movimento de jogadores teve várias repercussões. Nos campeonatos nacionais e regionais, a “qualidade” e o sucesso se concentraram nos clubes mais ricos.

Na Copa da Europa, por exemplo, a diversidade de times que se classificam para os primeiros oito lugares diminuiu consideravelmente nos últimos 20 anos. Porém, nos campeonatos mundiais, apesar de a Fifa continuar exigindo que os jogadores representem seus países de origem ou de cidadania, aconteceu algo diferente. Pelo fato de jogarem em importantes clubes europeus, muitos jogadores de países pobres melhoraram suas habilidades, que depois capitalizaram as seleções nacionais. Assim, nos últimos cinco mundiais, times que nunca tinham chegado às quartas-de-final conseguiram avançar até essa etapa. Paralelamente, alguns investidores decidiram entrar em clubes de futebol estrangeiros.

O Chelsea, por exemplo, foi adquirido pelo russo Roman Abramov. E, em 1999, o fundo de investimentos Hicks, Muse, Tate & Furst (agora HM Capital Partners) começou negociações com o Corinthians, o clube paulista, e acabou investindo US$ 60 milhões no primeiro ano de um contrato de dez. Para fundamentar sua decisão, o fundo calculou que no Brasil a quantidade de fanáticos pelo futebol superava, e muito, a de seguidores norte-americanos de vários esportes somados. Mas a aposta fracassou, porque, ainda que o Corinthians tenha ganhado a Copa Mundial de Clubes da Fifa em 2000, seu rendimento caiu, os torcedores protestaram pela venda dos jogadores-chave e até pelas mudanças na cor da camiseta. Como resultado de tantos problemas, o Hicks, Muse, Tate & Furst retirou-se do clube em 2003.

Quais as lições sobre a globalização que podem ser extraídas do futebol?

Ghemawat sublinha que sua evolução segue um itinerário similar ao de muitos indicadores econômicos desse fenômeno: registra auge antes da Primeira Guerra Mundial, retrocesso entre 1919 e 1945, e recuperação depois da Segunda Guerra Mundial. Por outro lado, o pouco interesse que desperta o futebol no público norte-americano, que representa o maior mercado esportivo do mundo, evidencia as disparidades entre os países; finalmente, o resultado do investimento do Hicks, Muse, Tate & Furst no Brasil mostra um dos erros mais freqüentes na avaliação de estratégias internacionais: colocar a ênfase no tamanho do mercado e passar por cima das diferenças.

Fonte de adversidades

Ghemawat sustenta que acreditar no achatamento do mundo pode gerar conseqüências negativas. Em primeiro lugar, porque induz as empresas a operar no exterior quando consideram que há pouco espaço para crescer localmente e a supor que a conquista de outros mercados será fácil.

Foi o caso da Coca-Cola, que focou na expansão mundial durante dez anos, até que Neville Isdell, ao assumir como presidente-executivo em 2004, mudou o rumo. Por que teria optado por essa estratégia se a média de vendas por pessoa nos Estados Unidos era quase dez vezes mais alta do que no resto do mundo? “Pensaram que poderiam crescer no exterior até atingir níveis similares aos dos Estados Unidos, o que não aconteceu”, explica Ghemawat. “Se acreditarmos em um mundo chato, acabamos por desenhar planos completamente irreais.

Na Coca-Cola, essa crença produziu vários anos de turbulência antes da chegada de Isdell.” O segundo problema costuma surgir na hora de escolher o mercado para o qual se expandir. “Para a Coca-Cola não foi um dilema, porque está presente em quase todos”, comenta Ghemawat, “mas é preciso levar em conta aquele que se coloca para as empresas que não são multinacionais típicas. Faz pouco tempo ministrei uma conferência em Viena, e os executivos presentes me perguntaram qual seria a estratégia de globalização adequada para as empresas austríacas. Minha recomendação foi que não mirassem para todo o mundo e que se concentrassem nos países do antigo Império Austro-Húngaro, por várias razões:

  • estão perto uns dos outros;
  • registram a renda per capita mais alta do Leste Europeu;
  • neles vivem pessoas que falam alemão, que têm uma tradição cultural similar.

A estratégia que proponho leva em conta os graus de diferença entre países. Aqueles que aderem à teoria de que o mundo é plano, por outro lado, consideram que nem as diferenças nem a localização têm grande peso e fundam suas estimativas quase exclusivamente no tamanho do mercado.”

Um terceiro perigo que ameaça as empresas que não levam em conta a importância das fronteiras é a tendência a competir da mesma maneira em todos os mercados, especialmente se tiveram sucesso no local, por isso tentarão repetir a fórmula conhecida.

Sobre isso, Ghemawat cita o exemplo do WalMart, que aplicou o mesmo modelo de negócio no mundo todo: “Ao se analisarem os dados de 2004 da empresa, comprova-se que os países onde teve mais lucros foram os de maior proximidade com os Estados Unidos, enquanto nos mais distantes experimentou prejuízos. Se no Canadá seu desempenho foi bom, o mesmo não vale para a Alemanha nem para a Argentina”.

O mundo ao contrário

Os avanços que aconteceram durante o século 20 na tecnologia da informação e nas comunicações, bem como a maior eficiência, refletida na redução de custos e preços, são indiscutíveis. Ghemawat é o primeiro a reconhecê-los, mas insiste em destacar três questões-chave que “reduzem” a globalização:

  • distâncias;
  • fronteiras;
  • diversidade cultural.

Ele assinala que o custo de uma ligação de três minutos de Nova York para Londres, que baixou de US$ 350 em 1930 para US$ 0,40 em 1999, aproxima-se de zero na telefonia por internet. “No entanto”, acrescenta, “a maior superfície de cobertura telefônica e a redução nos custos das comunicações não significam que as distâncias se anulem, tal como demonstra na prática a abertura da sucursal no Uruguai da empresa de software indiana Tata Consultancy Services (TCS).”

E ele conhece o caso de perto, porque, como assessor da TCS desde 2000, teve importância nessa decisão. “Influenciaram a necessidade de dominar o espanhol e a de que o fornecedor de software estivesse perto das operações locais dos clientes”, explica. “Diga-se de passagem, acho curioso que Friedman tenha escrito uma coluna sobre o assunto no The New York Times com a visão oposta. Para ele, a geografia, a língua e a distância não importam.”

Outro indício de que o mundo não é plano? As disparidades salariais entre países. “Se as fronteiras fossem irrelevantes e regessem as mesmas normas em todos os lugares, os salários na Índia e nos Estados Unidos se nivelariam instantaneamente”, sentencia. “Mas ninguém espera convergência de tal tipo nos próximos dez anos, e talvez nem sequer nos próximos 30.”

Segundo Ghemawat, maior conexão em escala planetária não cria um mundo homogêneo. De fato, Ghemawat lembra a experiência que o levou a pensar nas grandes diferenças que existem nos negócios internacionais.

Foi no início da década de 1990, quando visitou uma fábrica da Pepsi na região indiana de Punjab. “Por causa da turbulência sociopolítica”, relata, “muitos trabalhadores chegavam à fábrica portando fuzis AK-47. A Pepsi havia montado um sistema de controle que exigia entregar as armas na entrada e retirá-las ao finalizar a jornada de trabalho. ‘Não permitimos um único AK-47 dentro do prédio’, explicou o diretor de recursos humanos.

Ao comparar essa situação com a de outros países, tive de imediato uma nítida imagem das diferenças, que se intensificaria com os anos que dediquei ao trabalho na estratégia global.”


Saiba mais sobre Pankaj Ghemawat

Pankaj Ghemawat foi consultor de empresas da McKinsey antes de entrar para o corpo acadêmico da Harvard Business School, de Boston, Massachusetts, EUA. Tornou-se o professor titular mais jovem dessa casa em 1991, depois de lá cursar matemática e fazer doutorado em economia e administração de empresas. Mais tarde, incorporou-se ao corpo docente do espanhol IESE.

Especializado em globalização e estratégia, escreveu mais de 50 estudos de caso e um artigo publicado na Harvard Business Review (Regional strategies for global leadership), que ganhou o prêmio McKinsey de melhor do ano em 2005. É autor dos livros A Estratégia e o Cenário de Negócios (ed. Bookman), Commitment e Games Businesses Play, e seu próximo título é Redefining Global Strategy, com lançamento nos Estados Unidos previsto para setembro de 2007. Foi eleito membro da Academy of International Business. Ghemawat estará na ExpoManagement 2007, organizada pela HSM em novembro.


Fonte: Revista HSM Management – edição 64 , com reportagem de Viviana Alonso.