Gestão à brasileira

Quando herdou a empresa do pai, em 1944, Norberto Odebrecht pensou que tivesse herdado apenas dívidas. Esse pensamento perdurou até que ele conheceu seus mestres de obras, quase todos negros, muitos analfabetos, mas com extraordinária sabedoria prática, conquistada no contato com os problemas da realidade.

Então, doutor Norberto entendeu que os mestres de obras eram o grande patrimônio do negócio e foi com eles que ergueu a construtora Odebrecht –dando-lhes cada vez mais atribuições, delegando-lhes responsabilidades, recompensando-os, apostando no ser humano.

Assim nasceu a filosofia traduzida na emblemática sigla TEO, de Tecnologia Empresarial Odebrecht. Esse conjunto de fundamentos éticos, morais e conceituais estabelece as diretrizes de uma organização de empreendedores em que todo profissional sonha gerenciar contratos, porque sabe que, se passar a ter mais responsabilidade, também terá oportunidade de maior remuneração.

É um local onde a preocupação em construir confiança é permanente e a parceria entre líderes e liderados leva muitos a ter 30 anos de casa ou mais, modelo de empresa mais próximo do japonês –de uma relação fiel– que do norte-americano, caracterizado por funcionários com pouco apego e grande mobilidade.

Essa pequena história sobre Norberto Odebrecht nos foi contada pelo embaixador Rubens Ricupero, e ilustra à perfeição a hora da escolha que a gestão de empresas praticada no Brasil vive:

  • De um lado, está o modelo de gestão brasileiro com que nos acostumamos como padrão ao longo de décadas. É o de gestor que prescinde de criatividade ou mesmo de formação mais sofisticada, pois usa como principais ferramentas o corte de custos e o de preços.
  • De outro, aparece uma série de modelos e iniciativas de gestão de excelência, como o da Odebrecht, que priorizam pessoas, relacionamento e aprendizado. Foram se adaptando aos contextos desfavoráveis e aproveitando de maneiras produtivas características intrínsecas à cultura nacional, como a alta sociabilidade do brasileiro.

Nosso modelo baseado em custos tem razões de ser. Deve-se não apenas a um sistema educacional que deixa a desejar (apenas 10% da sociedade brasileira é de pessoas formadas na universidade), mas também a fenômenos brasileiros particulares, tais como:

  • a dependência de commodities, cujo desempenho varia ao sabor do mercado mais do que resulta de méritos;
  • uma sociedade originária da “casa-grande e senzala”, marcada pela desconfiança, em que chefes não se importam com subordinados e vice-versa;
  • um regime ditatorial que mostra a desimportância relativa da participação das pessoas nas decisões a serem tomadas;
  • um histórico de inflação galopante, que reforça o pensamento de curto prazo;
  • uma economia por muito tempo fechada, em que erros gerenciais não tinham maior consequência porque não havia concorrentes suficientes.

Já os novos modelos podem ser descritos, em boa parte dos casos, como adaptações “à moda verde-amarela” de receitas de gestão adotadas no exterior, no sentido que lhe foi conferido pelo escritor Oswald de Andrade em 1928, quando escreveu seu Manifesto Antropófago pregando a apropriação de ideias alheias e sua consequente transformação. “Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago”, disse Andrade, para, em seguida, posicionar-se “contra todos os importadores de consciência enlatada”. O documento ainda enalteceu nossa capacidade de comunicação e relacionamento –“[Padre] Vieira deixou o dinheiro em Portugal e nos trouxe a lábia”–, pediu menos conhecimentos consolidados e mais experimentação –“Contra a Memória fonte do costume. A experiência pessoal renovada”– e determinou o ambiente para tudo isso acontecer: “A alegria é a prova dos nove”.

A mudança de modelo, contudo, requer grande esforço de mudança de mentalidade. Por que, afinal, é preciso escolher entre os dois? Talvez porque a economia brasileira não seja mais fechada e concorrentes novos surjam cada dia que passa. Talvez porque, em um cenário de demanda aquecido, os talentos fiquem cada vez mais raros, e o modo de tratar as pessoas faça mais diferença. Talvez porque o imperativo da sustentabilidade dos negócios torne essa gestão apenas de curto prazo danosa demais. Qualquer que seja a explicação, o fato é que a gestão passa a ser, potencialmente, uma vantagem competitiva significativa –e algumas companhias começam a entender isso.

O que é efetivamente brasileiro

Este artigo reúne alguns desses modelos de gestão que vêm substituindo a costumeira gestão baseada em custos. Em termos metodológicos, é uma impropriedade listar alguns pontos comuns que parecem ser compartilhados por eles, uma vez que beiram os estereótipos, mas tomaremos a liberdade de fazê-lo. Por isso, pedimos ao leitor que os tome simplesmente como sinalizadores e que perceba que, para cada um desses aspectos, há tanto interpretações positivas, como as empresas investigadas por nossa equipe lhes deram, quanto negativas:

1. Ambiente familiar e estável.

Ao contrário do que vemos em fórmulas de gestão norte-americanas, prevalece em parte significativa das empresas brasileiras certa predisposição à estabilidade no emprego, tanto dos funcionários como dos chefes. O ambiente em que cada um conhece os familiares dos colegas e os relacionamentos se tornam pessoais serve para o bem e para o mal (alguém incompetente é mantido no cargo porque tem filhos para criar, o que neutraliza qualquer tentativa de impor uma meritocracia organizacional).

2. Aceitação do estrangeiro.

Essa admiração que o brasileiro sente pelos nascidos fora do Brasil, de maneira geral, já foi vista como complexo de vira-lata pelo dramaturgo Nelson Rodrigues, mas há pelo menos um aspecto muito benéfico nisso: estamos predispostos a aprender com os estrangeiros, quando boa parte dos povos não demonstra receptividade alguma ao que vem de fora –e, assim, não há aprendizado possível. E do aprendizado vem a inovação.

3. Espiritualidade.

Ela está presente em muitas culturas corporativas brasileiras e, como diz a especialista Carmen Migueles, da Fundação Dom Cabral, é um sentimento que tende a dar significado às tarefas, a ajudar a superar os obstáculos e a valorizar o trabalho em equipe. Preocupações genuínas com responsabilidade social e sustentabilidade também tendem a beber dessa fonte (que não se confunde, necessariamente, com religião) e esse é um terreno no qual o Brasil vem se destacando muito, com uma inovadora gestão de organizações sociais ou com movimentos como o Brasil Competitivo, de empresas privadas envolvendo-se na melhoria da gestão pública. Vale dizer que Odebrecht teve uma educação nos moldes protestantes.

4. Relacionamento-informalidade-flexibilidade.

A alta sociabilidade é uma das características que mais aparecem nas pesquisas etnográficas sobre o povo brasileiro, e ela não poderia faltar nas empresas. Isso explica por que as mídias sociais vêm tendo tanta adesão no Brasil e, se sociabilidade em alta pode acarretar produtividade em baixa, as pessoas batizadas de conectoras pelo especialista Malcolm Gladwell, autor do best-seller O ponto da virada (ed. Sextante), são consideradas, crescentemente, fator de competitividade e vetor de inovação.

A organização informal é especialmente fortalecida por essa característica e, como se sabe, tem sido cada vez mais associada a ganhos de desempenho consideráveis. Duas outras consequências potencialmente positivas disso são a liderança informal distribuída (essa liderança espontânea e informal é uma força nossa, na opinião de alguns) e o aumento da flexibilidade organizacional, que é sua capacidade de se adaptar às circunstâncias mais diversas e imprevistas. No entanto, há lados “sombra” a destacar também: a insuficiência de estruturas e processos formais e rigorosos muitas vezes torna difícil replicar o sucesso e o desempenho e pode aumentar a já baixa confiança existente no ambiente de trabalho; de outro lado, o “jeitinho” brasileiro de encontrar atalhos com frequência é considerado ofensivo em alguns países.

5. Agilidade nas decisões.

O pensamento de curto prazo é prejudicial em si, mas, historicamente, reduziu a importância das estruturas e processos nas empresas brasileiras, fazendo com que, em boa parte delas, a tomada de decisões seja ágil. Isso só não é convertido em vantagem competitiva maior, de velocidade e intraempreendedorismo, por conta de o sistema ainda ser altamente hierárquico e seguir os velhos parâmetros que Gilberto Freyre batizou de “casa-grande e senzala”, com os não líderes sendo considerados “ninguém”, como diria o sociólogo Darcy Ribeiro. O pensamento de curto prazo tem um paralelo interessante da “insatisfação” saudável, que nos leva para frente e nos faz mudar, muito pregada por empresas como a Ambev. Isso é uma fortaleza nossa, uma vez que, como Guimarães Rosa dizia, “o homem satisfeito dorme”.

6. Alegria.

Embora Oswald de Andrade e Sérgio Buarque de Holanda não tenham apontado a cordialidade brasileira, qualquer executivo estrangeiro que visita uma instalação no País diz: a alegria, o bom humor e a afabilidade encontrados aqui chegam a ser contagiantes. Esse ambiente de trabalho descontraído e agradável, decorrente também da informalidade e do relacionamente descritos no item 4 desta lista, pode ser um motor de produtividade poderoso, mas, ao mesmo tempo, pode tornar-se uma perigosa distração. Outro senão é que o ganho só é contabilizado quando se respeita a fronteira entre o cordial e o invasivo, algo que nem sempre ocorre.

7. Aprendizado.

Ainda falta aos brasileiros a disciplina tão necessária ao aprendizado permanente formal, é verdade, porém, no que se refere a aprender informalmente, eles mostram estar bem na fita –talvez pelo fato de o Brasil ser um país jovem não apenas em história, como também, por enquanto, na faixa etária majoritária de sua população. Essa curiosidade fica evidente quando observamos o lado “early adopter” do consumidor brasileiro, que costuma estar sempre pronto a incorporar novas tecnologias. Outras características, como não sermos refratários ao estrangeiro e nossa alta sociabilidade, potencializam a capacidade de aprendizado. Se puder haver um equilíbrio entre o informal (tácito) e o formal (explícito –ao qual, muitas vezes, somos avessos), viveremos o melhor dos mundos nesse aspecto. Temos visto algo nessa linha, por exemplo, no grupo Gerdau, que, segundo seu líder, Jorge Gerdau Johannpeter, usa a própria elaboração da estratégia como oportunidade de oferecer aprendizado a seu pessoal.

8. Cautela.

Gestores brasileiros são famosos por sua aversão a riscos –e isso pode ser um enorme ponto fraco na exploração de oportunidades, na medida em que dificulta a inovação. Quando, contudo, se trata de lidar com ameaças, torna-se, ao contrário, um atraente ponto forte. Foi esse posicionamento que fez com que nosso sistema bancário atravessasse a crise financeira mundial, em 2008, razoavelmente incólume. Foi a integração vertical, com a apropriação dos vários elos da cadeia de valor, que aumentou a competitividade do grupo varejista de vestuário Riachuelo. É a cautela que até anda fazendo com que as empresas brasileiras se internacionalizem –compensando eventuais futuras “vacas magras” do mercado doméstico– e explica também a preferência por globalizar-se por meio de parcerias e mais nas operações comerciais e de serviço do que nas industriais. Ainda é preciso encontrar o meio-termo entre os extremos da cautela e da ousadia, lógico, porém, se a empresa não for demasiado conservadora, esse atributo continuará servindo-lhe muito bem.

9. Foco na “periferia”.

Não é porque Cazuza cantava “raspas e restos me interessam”, mas que o compositor parece ter detectado um diferencial brasileiro, isso parece. Um dos expertises frequentemente atribuídos a nós é o talento para identificar (e investir em) oportunidades de mercado menos disputadas, que estão nas franjas e bordas dos mercados mais convencionais –algo propulsor da inovação, diga-se. Apesar de hoje consumidores da base da pirâmide socioeconômica serem concorridos, algumas empresas brasileiras os focaram bem antes de a moda se estabelecer, a começar por grupos atacadistas como o mineiro Martins, que abastecia as vendinhas mais remotas do País, ou o banco Bradesco, que instalou agências móveis em barcos dos rios amazônicos para atender os índios. O mesmo raciocínio de periferia explica a estratégia de internacionalização da Odebrecht, iniciada nos anos 1970, que foi atuar em mercados desprezados, como o de Angola, na África, e o investimento nos remédios genéricos, que transformam o que era marca em commodity.

10. Resistência.

“O sertanejo é antes de tudo um forte”, escreveu Euclides da Cunha em Os sertões. Isso se aplica com perfeição às organizações brasileiras, incluindo mesmo as localizadas à beira-mar. O instinto de sobrevivência construído em um país com instituições frágeis, baixa confiança e grande complexidade para fazer negócios criou uma resiliência digna de nota em nosso mundo corporativo, que reúne muitas das características aqui tratadas, como relacionamento, agilidade e aprendizado. O perigo é a resistência virar teimosia.

Gestores que vêm do futuro

Um dos maiores visionários da gestão brasileira, Norberto Odebrecht é da Bahia (fora do eixo Rio – São Paulo – Porto Alegre, normalmente associado à vanguarda gerencial do País). Outro dos maiores visionários da gestão brasileira vem do passado: Irineu Evangelista de Souza, o Barão de Mauá (depois Visconde), que se envolveu em tantos e tão diversos empreendimentos arrojados e superou tamanhas dificuldades que se tornou, em vida, personagem de um romance de Júlio Verne.

Em Da Terra à Lua, Verne escreveu (a reprodução não é literal): “Se você quer conseguir financiamento para ir à Lua, tem de procurar um dos 12 homens do mundo que vêm do futuro, e um deles é o Barão de Mauá, no Rio de Janeiro”. De fato, Mauá fez o impensável em pleno século 19: cuidou de sustentabilidade. Ele adquiriu o terreno onde hoje se encontra o Parque Nacional do Itatiaia, entre São Paulo e Rio de Janeiro, e o transformou no primeiro parque nacional brasileiro.

A melhor notícia é que, agora, não dependemos mais dos visionários. Tem havido uma disseminação dos diferenciais da gestão brasileira e as histórias contadas nesta revista são a prova disso –o que não significa, no entanto, que não se cometam erros e não haja aspectos negativos entre os positivos.

Felizmente, a gestão não criativa e meramente baseada em custos está superada, mas cada empresa enfrenta sua hora da escolha, com a maior quantidade de exemplos positivos que já houve neste País. Parafraseando a escritora francesa Simone de Beauvoir (brasileiros se apropriam do estrangeiro, lembra-se?), a gestão não nasce brasileira (vem de Frederick Winslow Taylor e de Peter Drucker, entre muitos outros), mas torna-se.

O cronograma da gestão no Brasil

1500
Os primeiros aventureiros chegam ao Brasil, trocando a sociedade feudal europeia pela possibilidade de construir riqueza. Trata-se de um “protoempreendedorismo”, simbolizado pelos bandeirantes paulistas.
Período colonial

1785
D. Maria, a Louca, rainha de Portugal, proíbe fábricas no Brasil em plena Revolução Industrial, o que é um atraso, mas há uma economia mercantil, de trocas de mercadorias (sem circulação de moedas) entre pequenas unidades produtivas
Numa troca de papéis única na História mundial, a colônia vira metrópole e a metrópole vira colônia.

1808
Com a vinda da Corte Portuguesa para o Brasil, são fundadas as primeiras estatais, entre elas o Banco do Brasil.

1810
Visionário, o Visconde de Cairu (José da Silva Lisboa) advoga que a produção não depende apenas dos três fatores clássicos –recursos naturais, trabalho e capital–, mas também da inteligência.

1822
A independência do Brasil
A economia do Brasil é bem maior maior que a de Portugal, apesar de todas as restrições que sofre. Temos um empreendedorismo mais definido no País.

1841
Irineu Evangelista de Souza (futuro Visconde de Mauá) funda a indústria naval brasileira no Rio de Janeiro. Ele criaria outras tantas empresas.
Durante esse período até o final do século 19, os latifúndios se estabelecem. A escravidão leva ao relacionamento “casa-grande e senzala”,
cuja essência de desigualdade entre líderes e liderados permanece até hoje nas empresas, segundo muitos especialistas.

1940
O Brasil se torna o maior exportador mundial de café, saga comparada pelos historiadores à conquista do Oeste nos Estados Unidos, que o cinema imortalizou com os filmes do tipo western.


Fonte: extraído de parte do artigo de Adriana Salles Gomes, editora-executiva de HSM MANAGEMENT e responsável pelo conteúdo editorial do movimento Brasil: Presença na Gestão que dá Certo.