A próxima ordem mundial

Esforços aparentemente isolados, como o da Suécia com biocombustíveis e o da DuPont com polímeros baseados em soja, estão conectados e são o prenúncio do fim da bolha da era industrial, que estourará como acontece com as bolhas do mercado financeiro, escrevem os especialistas Peter Senge, Bryan Smith e Nina Kruschwitz. O meio ambiente pede socorro, e esforços importantes já começam a ser praticados no mercado.

Entre os países industrializados, provavelmente foi a Suécia o que mais avançou na busca da “aposentadoria” dos combustíveis fósseis. Hoje apenas 30% da energia sueca deriva do petróleo (em 1970, eram 77%), enquanto, nos Estados Unidos, são 85% [no Brasil, álcool e gasolina dividiam o mercado meio a meio, segundo dados de abril de 2008].

Cerca de 15% dos automóveis vendidos no país escandinavo em 2007 podiam rodar com etanol, e estima-se que um veículo movido a etanol de cana-de-açúcar ou de celulose emita entre 85% e 90% menos gases do que os movidos a gasolina [no Brasil, 87% dos veículos vendidos são de bicombustível, ou flex, segundo dados de julho de 2008].

Todos os grandes fabricantes de automóveis suecos, entre eles a Scania –maior montadora da Europa–, oferecem veículos movidos a etanol, gasolina ou uma combinação dos dois.

Em 2005, uma comissão do governo anunciou a intenção de fazer da Suécia a “primeira economia livre do petróleo”. O ponto de partida é a chamada “região dos biocombustíveis”, que reúne 22 cidades do Golfo de Bótnia, a cerca de 320 quilômetros ao norte de Estocolmo.

Nessa área, o etanol está tão disseminado quanto a gasolina. Pode parecer que uma mudança dessa magnitude exija um esforço imenso do governo, grandes subsídios e vários anos de pesquisa. Porém até pouco tempo atrás nada disso existia. Redes locais se desenvolveram em silêncio, movidas pelos esforços de pequenos grupos de líderes dedicados, tanto do setor público como do privado.

A experiência da Suécia é um modelo valioso do que os historiadores chamam de “inovações de base”: mudanças fundamentais na organização e na tecnologia que criam novos setores de atividade, alteram os que já existem e, com o tempo, mudam a sociedade.

Foi o que aconteceu com a energia elétrica, o automóvel, a aviação e, mais recentemente, a internet. As inovações de base envolvem uma série de invenções, práticas, redes de distribuição, empreendimentos, modelos de negócio e mudanças no pensamento individual e organizacional, que se combinam para transformar o modo de fazer negócios, de usar a tecnologia e de envolver as pessoas.

Nos últimos anos, quando as conseqüências da mudança climática mundial ficaram claras, teve início uma nova onda de inovações de base, boa parte em empresas famosas.

A DuPont, uma das maiores e mais antigas dos Estados Unidos, está alterando várias linhas de produtos a fim de substituir o uso do petróleo por um componente de origem biológica. Os líderes da DuPont acreditam que existe uma oportunidade para criar novos produtos (como polímeros com base na soja e termoplásticos derivados do açúcar) que permitam reduzir a dependência do petróleo e do gás convencional.

Em 2007, a Coca- Cola se propôs, em associação com a organização não-governamental World Wildlife Fund (WWF), substituir “cada gota de água usada nas bebidas e na produção”, de acordo com o presidente da empresa, Neville Isdell.

Desde 1988, a Nike reduziu sua “pegada de carbono” em 75% – medida que exigiu a reavaliação do design, da produção e da distribuição dos produtos.

Esses esforços podem parecer isolados, mas existe uma conexão entre eles. A perspectiva de mudanças climáticas, o aumento dos resíduos industriais e da poluição e o esgotamento dos recursos essenciais estão gerando um novo pensamento.

Por isso, a era industrial já pode ser vista como um tipo de bolha expandida, com algumas dinâmicas parecidas com as de uma bolha financeira e igualmente insustentável no longo prazo.

A região dos biocombustíveis da Suécia e os esforços de DuPont, Coca- Cola e Nike, entre outras empresas, nos dão pistas de como será a nova era, quando não houver mais espaço para a tal “bolha” e o modo de pensar associado a ela.

A bolha da era industrial

Em termos financeiros, uma bolha é um fenômeno no qual o preço dos ativos (ações e outras formas de capital) supera seu valor básico. Sempre que surge uma bolha no mercado financeiro [como acaba de ocorrer], é comum que nos perguntemos como o fenômeno envolveu pessoas inteligentes e bem-informadas.

A resposta é que, nos períodos de expansão excessiva, surgem duas visões paralelas: uma a partir de dentro da bolha e outra a partir de fora –ambas consideradas reais. Quanto mais a bolha cresce, mais pessoas reforçam a crença e as percepções que a sustentam, e quem está envolvido fica tão absorvido pela nova realidade que não consegue compreender o ponto de vista de quem está fora.

As bolhas não são totalmente negativas, pois geram benefícios reais para algumas pessoas por algum tempo. Quanto maior sua duração, mais pessoas e recursos são envolvidos e mais gente ganha. Se uma bolha sobrevive por várias gerações, fica difícil imaginar uma alternativa a ela. Mas, em algum momento, as tensões entre a bolha e a realidade precisam ser solucionadas.

A era industrial é uma bolha, do tipo ampliada. Sua expansão já dura séculos, o que pode levar a crer que durará para sempre, e seu impacto positivo é inegável. A expectativa de vida no mundo industrializado praticamente dobrou nos últimos 150 anos, o analfabetismo passou de 80% para menos de 10% e surgiram produtos com benefícios considerados impensáveis (ferramentas, iPod), serviços (viagens aéreas, eBay) e grandes avanços em saúde, comunicação, educação e lazer.

No entanto, os efeitos colaterais mais prejudiciais da era industrial estavam presentes no mundo real desde o início: impacto ambiental, aumento da quantidade de resíduos, pressão crescente sobre os recursos naturais não-renováveis e “comoditização” da vida cotidiana, que ampliou a distância entre ricos e pobres. Mas o fato é que já não importa o valor dos ativos da industrialização; seus custos totais [veja quadro ao lado começam a deixar a bolha insustentável.

O novo mundo real

A alteração climática no meio ambiente pode ser considerada, na verdade, um presente, uma vez que está nos servindo como alerta para o fim da era industrial. Até porque no atual sistema industrial não será possível cumprir o desafio 80-20: reduzir 80% das emissões de carbono em 20 anos.

Será preciso transformar nosso modo de usar a energia e os veículos, nossa forma de morar e de trabalhar e o sistema de transportar os produtos. Para isso, será necessário contar com outras mudanças, hoje impensáveis, daí a importância da inovação de base.

Temos de repensar e reconstruir sem demora a infra-estrutura, a tecnologia, as empresas e a maneira de tratar a natureza adotada hoje. Superar a bolha não significa voltar a uma vida pré-industrial, mas sim começar a fazer escolhas com base em princípios diferentes. Enquanto na natureza existe uma fonte de energia principal (o Sol), mais de 90% da energia usada na era industrial deriva da queima de combustíveis fósseis.

Superar a bolha significa aprender a viver com nossos “ganhos” de energia, voltados para as fontes renováveis (solar, eólica, derivada de vegetais).

Na natureza não existe desperdício: todo subproduto de um sistema serve de alimento para outro, enquanto a bolha da era industrial vem gerando uma quantidade enorme de resíduos. Num mundo pós-bolha, tudo (carros, celulares, eletrodomésticos) deve ser totalmente reciclável, remanufaturável ou passível de decomposição. Também não cabe a atual distância entre ricos e pobres, com 85% da riqueza mundial nas mãos de 15% da população. E, neste novo mundo real, devemos ser só uma das espécies vivas que têm valor.

O caso sueco

Aprender a viver fora da bolha da era industrial (e sobretudo cumprir o desafio 80-20) exige inovações de base em uma escala e velocidades jamais vistas. Como na Revolução Industrial, as empresas podem desempenhar papel essencial nisso, conforme seus líderes apostem seu espírito empreendedor, sua visão e sua capacidade de gestão no sentido de uma mudança coletiva. Foi o que fez Per Carstedt, dono de uma concessionária da Ford situada no norte da Suécia. Depois de viver alguns anos no Brasil, onde teve a oportunidade de participar da conferência Eco-92, começou a se interessar pela questão ambiental de forma mais ampla. “Eu via o alcance e a escala das mudanças necessárias e me perguntava se poderia fazer alguma coisa”, lembra Carstedt.

A resposta surgiu quando uma fundação pediu ajuda para desenvolver automóveis movidos a etanol no mercado sueco. “Eu já tinha dirigido carros a álcool no Brasil, mas as pessoas diziam que na Suécia não ia dar certo, por causa do frio e da falta de mercado.”

Após estudos, Carstedt encontrou um executivo da Ford que cuidava, na sede, de um programa para fabricar veículos pequenos flexíveis em relação ao combustível utilizado. “A esposa do executivo adorava a Suécia e ele me viu como aliado. Em 1995, ajudou nossa concessionária a comprar três carros Ford flexíveis.” Quando esses carros despertaram algum interesse na Suécia, Carstedt perseverou. Com um colega da Swedish Ethanol Development Foundation (renomeada BioAlcohol Fuel Foundation), passou quatro anos viajando de cidade em cidade até formar um consórcio com meia centena de participantes que se comprometeram a comprar 3 mil carros flexíveis. Não há dúvida de que Carstedt soube empreender. Em vez de discutir com os fabricantes se havia mercado ou não, preferiu partir para uma “prova de campo”.

Mas não seria boa idéia levar carros movidos a etanol para um lugar que não tivesse o combustível, certo? Quando a fundação importou os primeiros 50 carros flex, Carstedt tinha conseguido convencer apenas dois postos a instalar bombas de álcool. Em seguida, a BioAlcohol Fuel Foundation iniciou uma campanha voltada para os postos. “Em 2002, tínhamos 40 postos de combustível no país, mas em junho de 2004 inauguramos o centésimo”, conta Carstedt. A quantidade dobrou em 2005 e novamente em 2006. Em agosto de 2007, havia mil postos suecos com oferta de álcool.

No final da década de 1990, era preciso que uma grande empresa automobilística se comprometesse a desenvolver a próxima geração de carros a álcool para a Suécia. Nessa busca, Carstedt descobriu que as pessoas mais dispostas não eram os engenheiros da área de motores de transmissão nem os pesquisadores de biocombustíveis, mas os executivos de marketing. O vice-presidente de marketing da Saab, por exemplo, identificou uma possibilidade de criar diferencial para a empresa e convenceu seus técnicos. Resultado: a Saab redirecionou a verba de marketing, destinando-a para a produção de determinado número de carros movidos a etanol que participariam de um teste-piloto ali. E a história continuou.

Juntas, todas essas iniciativas criaram uma nova indústria de combustíveis na Suécia. No entanto, Carstedt sabia que o transporte gerava apenas um quarto das emissões e queria uma ação mais completa. Definiu uma meta: a filial de sua concessionária aberta em Umeå, no norte da Suécia, deveria ser a “agência de automóveis que mais respeita o ambiente” em todo o planeta. Era preciso operar em um sistema natural, reciclando a água, preservando o calor e obtendo maior eficiência energética. Sua idéia bastou para dar origem ao que ficou conhecido como Zona Verde, área que reunia a concessionária de Carstedt, um McDonald’s e um posto com bombas de gasolina e de biocombustíveis. Seguindo um conceito de ecologia industrial (os resíduos de uma planta industrial abastecem outra), projetaram sistemas conectados (o excesso de calor das cozinhas do McDonald’s era enviado para a concessionária ou para o posto, por exemplo).

Para surpresa de Carstedt, seu projeto-piloto atraiu a atenção da mídia mundial. Entre 2000 e 2006, a Zona Verde recebeu mais de 500 visitas oficiais para estudos. Não demorou para se consolidar a idéia de ampliar a iniciativa, a fim de transformá-la em um distrito industrial livre de combustíveis fósseis. Foram definidos três objetivos:

  1. Aumento da eficiência energética (produzindo combustível renovável suficiente para atender às necessidades).
  2. Construção de uma base industrial regional capaz de favorecer o desenvolvimento de negócios e dos postos de trabalho.
  3. Aposta na inovação, envolvendo universidades e outras instituições na constante criação de conhecimento.

Hoje, trabalham na Zona Verde mais de 200 pessoas, que se ocupam de projetos de pesquisa e esforços inovadores nos campos da construção e planejamento urbano, desenvolvimento de matérias-primas e produção de etanol. Em meados de 2004, foi inaugurada uma usina de etanol de celulose, produzido a partir de farpas de madeira, subproduto dos resíduos da atividade de reflorestamento sueca. “Haverá vários outros aperfeiçoamentos de processos que poderemos compartilhar com outros, pois a nova unidade utiliza tecnologias que são viáveis em outras partes do planeta.” Empresas, governos regionais, designers e estudantes estão envolvidos na busca de metas comuns.

Carstedt também ajuda a coordenar um projeto mundial orçado em US$ 40 milhões, patrocinado pela União Européia e que envolve dez áreas de atividade interessadas em seguir os passos do norte da Suécia. “O segredo está em desenvolver processos, projetos e fontes de energia sustentáveis daqui a 30 ou 50 anos. A redução das emissões de carbono que o mundo necessita exige a modificação dos sistemas, e isso envolve pessoas trabalhando juntas na criação de automóveis, instalações e infra-estrutura de energia diferentes.”

Mais histórias de sucesso

Existem outros casos de sucesso com as mesmas características da experiência sueca. Algumas novidades, como o sistema de certificação Leadership in Energy and Environmental Design (Leed), aplicado na área de construção civil, foram absorvidas por grupos do setor –nesse caso, o United States Green Building Council, iniciativa para promoção de uma construção civil “mais verde” nos Estados Unidos.

Outras ações foram movidas por empresas ou por agências governamentais. Em todos os casos, as pessoas aprendem a procurar aliados fora de suas empresas e encontram benefícios no curto prazo, em geral superiores às expectativas.

Empresas de setores variados, como IBM, Alcoa e Wal-Mart, conseguiram fazer economias consideráveis com a redução do desperdício e do uso de energia. A DuPont economizou US$ 3 bilhões, enquanto a General Electric gasta cerca de US$ 12,8 milhões a menos por ano por usar sistemas de iluminação de alta eficiência em suas fábricas. A Ford criou uma tecnologia que, ao aplicar três camadas de pintura simultaneamente, reduz em 20% o processo de pintura dos novos veículos e evita o uso de sistemas de secagem que consomem grandes quantidades de energia.

Com essas medidas, as fábricas da Ford emitirão cerca de 15% a menos de CO2 e 10% a menos de compostos orgânicos voláteis. Google e IBM descobriram que a eficiência energética proporciona uma vantagem competitiva, porque os custos acumulados com a entrada em funcionamento de um computador e com seu resfriamento são mais elevados do que o próprio equipamento. Além da possibilidade de redução de gastos, há a oportunidade de novos ganhos. A General Mills, por exemplo, vende as cascas de aveia como combustível para aquecimento de ambientes e ganha mais na operação do que gastava para se livrar do subproduto.

De acordo com a associação norte-americana dos proprietários de imóveis (National Homeowners Association), o mercado das “construções verdes” (com eficiência energética e baixa produção de resíduos) já movimentava cerca de US$ 7,4 bilhões em 2005 –e, para 2010, a previsão é que esse número chegue a US$ 38 bilhões.

Mas existe um fator que talvez tenha mais importância. As empresas que vêm descobrindo como escapar da bolha estão estabelecendo novos parâmetros em seus setores de atividade, como a GE, que se comprometeu a dobrar o investimento em pesquisa e desenvolvimento de tecnologias Ecomagination (turbinas eólicas, eletrodomésticos com uso racional de energia, sistemas de dessalinização e motores de aviação de baixas emissões). Segue de pé o projeto de crescimento pelo qual a empresa pretende duplicar em cinco anos os ganhos com produtos derivados dessas tecnologias, est imados em US$ 20 bilhões. No início de 2008, a divisão GE Energy Financial Services anunciou que elevou sua meta de investimentos em energia renovável em 50% para 2010 (o total de investimentos atuais é de mais de US$ 3 bilhões). Diversos investimentos das divisões da GE, além dos próprios projetos da empresa, atingem ampla variedade de pequenas e médias empresas. E há outras empresas mudando seus setores assim, como Toyota, Honda, Sony Europa e Shell.

Por onde começar

Todos esses exemplos mostram que aprender a viver fora da bolha pode ser excitante, rentável e benéfico do ponto de vista da estratégia, mas isso não quer dizer que seja tarefa fácil. Em muitos setores não existem linhas claras para essa transformação; cabe aos gestores descobrir como equilibrar as necessidades de mudança tecnológica e operacional de longo prazo com o cotidiano da empresa. Os inovadores da sustentabilidade devem fazer isso fomentando diálogos comprometidos, capazes de construir um entendimento comum e de desenvolver a capacidade de trabalhar em conjunto. Ninguém sabe ainda como se pode chegar a uma redução de 80% nas emissões mundiais de carbono nas próximas duas décadas. Mas se sabe que as lideranças farão surgir um mundo profundamente diferente do regido pela mentalidade do “pegue, use e jogue fora” que predominou na era industrial.


Fonte: Revista HSM Management. Produzido pela Strategy+Business, revista de gestão trimestral da firma de consultoria Booz Allen Hamilton.