De médico a líder

A medicina vai sofrer uma mudança radical à medida que a velha guarda der lugar a equipes movidas a resultados. Thomas H. Lee. Ele é diretor da rede de saúde integrada Partners HealthCare System, nos EUA, e professor de medicina da Harvard Medical School. É autor, com James J. Mongan, de Chaos and Organization in Health Care (MIT Press, 2009).

O problema com o setor de saúde é gente como eu: médicos (em sua maioria, homens) na casa dos cinquenta ou mais, que aprenderam o que sabem quando a medicina era mais arte e menos dinheiro. Aprendemos a chegar ao hospital antes do dia raiar, a ficar até que todo paciente estivesse estável, a focar as necessidades de cada paciente a nossa frente e a não se preocupar com custos.

Aprendemos a checar o resultado de cada exame com os próprios olhos, a não depender de ninguém. O único jeito de garantir a qualidade era adotar critérios elevados para nós mesmos e respeitá-los. Agora, em muitas instituições de saúde e consultórios, estamos no comando. E isso é um problema, pois a saúde hoje precisa de uma abordagem fundamentalmente distinta — e de uma nova geração de líderes.

Em certos países, o debate recente sobre a saúde se concentra basicamente na escalada dos custos. Mas o desafio financeiro é só um sintoma. Qual o verdadeiro problema? Por incrível que pareça, o papel dos suspeitos de sempre é pequeno. Ganância e incompetência existem, sim, mas economistas concordam que, sozinhas, não responderiam pela alta anual de dois dígitos nos custos da saúde em certos lugares do mundo.

A boa e a má notícia é que o maior fator da elevação dos custos é o progresso na medicina: novos fármacos, novos exames, novos aparelhos e novas maneiras de usá-los. Essas ferramentas em geral são maravilhosas e complexas, e seu uso requer um número crescente de gente altamente especializada. Um doente com um quadro complicado acaba vendo uma série de médicos — médicos muitas vezes espalhados por várias instituições.

Esse progresso naturalmente é bem-vindo, e às vezes parece milagroso. Jon Lester, arremessador do time americano de beisebol Red Sox, foi diagnosticado com linfoma em setembro de 2006; estava de volta aos treinos em meados em 2007 e conseguiu a proeza de um “no-hitter” em 2008. Steve Jobs segue na ativa. Hoje, muita gente com diagnóstico de insuficiência cardíaca pode voltar ao trabalho depois do implante de um marca-passo de última geração.

Mas essa explosão de conhecimento esta ocorrendo num sistema fragmentado e desorganizado demais para absorvê-lo. O resultado é caos. Na minha própria instituição, a americana Partners HealthCare, posso citar o triste exemplo da viúva de um paciente que morreu de câncer. Nos últimos dias da estadia final de seis semanas do rapaz na unidade de terapia intensiva, a moca exigiu que todos os médicos do marido se reunissem com a família. Não era a família que precisava da reunião, disse ela. Eram os médicos. O que ela queria era ter certeza de que todos os envolvidos estavam de fato conversando entre si, pois era comum receber, deles, informações divergentes ou até contraditórias. A confusão que descreveu faz mais do que abalar a família, é claro. Leva a intervenções redundantes e a erros que elevam custos e ameaçam a qualidade.

Remédio amargo

Para realmente atacar esse caos, precisamos de um novo tipo de liderança em toda esfera do sistema de saúde — em grandes redes integradas como a Partners, em hospitais, em consultórios médicos. Embora o tipo de atividade e os indicadores de desempenho possam diferir de um cenário para outro, as principais responsabilidades da liderança são as mesmas. Para saber quais são, o líder deve primeiro assimilar três duras mensagens:

Resultados importam.

A maioria dos médicos da duro, mas a qualidade de seu trabalho não deveria ser medida pelo número de pacientes que atendem ou de exames e procedimentos que solicitam. O que importa são os resultados. Há controvérsia aqui, pois é sabidamente complicado comparar resultados. Afinal, a evolução do paciente depende muito da seriedade de seu quadro, para começo de conversa. Ainda assim, a referenda deve ser a evolução do paciente. Com que frequência sobrevive à doença e se recupera daquilo que o debilita? Com que frequência adquire infecções e outras complicações? Suas necessidades psicológicas e de informação são contempladas?

“Eficiência” não é palavrão.

Quando instituições de saúde e companhias de seguros usam o termo, a suspeita de muitos profissionais da área é que seja um disfarce para corte de custos. Mas gente como Michael Porter, da Harvard Business School, vem apontando há anos que, na saúde, “eficiência” significa outra coisa: atingir bons resultados do modo mais eficiente possível. Talvez seja impossível expressá-la como uma relação numérica (qualidade dividida por custos) que permita comparações relevantes entre instituições e profissionais. Mas medir resultados e custos permite, sim, que esses prestadores busquem aprimoramentos — e aprendam com concorrentes.

Resultados melhores exigem trabalho em equipe.

Um médico e um hospital, por si sós, têm controle limitado sobre o destino do paciente. Em qualquer organização de saúde, uma coordenação superior, a troca de informações e a colaboração entre gente de várias disciplinas são indispensáveis para uma maior eficiência e resultados melhores.

Muitos líderes de instituições de saúde sabem exatamente em que momento perceberam que seu mundo estava mudando; em geral, foi quando alguém de fora da organização começou a medir seu desempenho. Embora poucas instituições aplaudam a mudança, ela arma o palco para uma nova geração de líderes. Líderes tradicionais tentam ganhar tempo, rechaçar mudanças e maximizar enquanto podem a receita sob o atual regime de pagamento. Já novos líderes se concentram em resultados e usam a mensuração do desempenho como ferramenta de motivação para organizar colegas e promover avanços.

Os desafios são similares independentemente de o líder estar atuando numa grande rede integrada de atendimento, num hospital, numa grande entidade de medicina de grupo ou num pequeno consultório médico. As táticas de um cenário para o outro irão variar — mas não o amplo papel que cada líder terá de assumir.

Articule visão e valores

O processo de reorganização começa com a articulação da lógica e das metas da mudança. Mudar é difícil em qualquer campo e os valores altruístas na base da medicina acabam reforçando a resistência de profissionais da saúde a mudanças na ordem vigente. Tradicionalistas da minha geração sabem que são pessoas boas, que trabalham duro — e é com convicção que apontam para os riscos da mudança. Logo, a visão articulada por líderes da saúde deve transmitir tanto compreensão como determinação. Deve reconhecer a importância daquilo que médicos fazem atualmente, mas deixar explícito que terão de trabalhar de outra forma no futuro. Deve ser direta sobre os critérios que determinarão seu sucesso. E deve ser ao mesmo tempo otimista e realista, expressando a crença de que o atendimento prestado pode melhorar e de que prestar um atendimento superior e a melhor estratégia de negócios.

Uma visão eficaz ajuda as pessoas a aceitar mudanças inevitáveis e contextualiza informações e eventos. Muitos médicos e dirigentes hospitalares têm, por exemplo, uma reação negativa visceral a divulgação publica de dados sobre a qualidade do atendimento que prestam. Sabem das limitações dos dados e abominam a ideia de que a instituição ou o profissional sejam classificados numericamente com base em informações inadequadas, facilmente mal interpretadas. Sua reação típica a decisão de divulgar dados sobre a qualidade do atendimento e dizer que a civilização esta chegando ao fim.

Vejamos, em comparação, como o cirurgião cardíaco Delos M. Cosgrove, que assumiu a presidência da americana Cleveland Clinic em 2004, integrou o imperativo da medição de desempenho a uma grande visão. Se a instituição estava comprometida com a idéia do “paciente em primeiro lugar”, defendeu, seria preciso não só adotar o sério compromisso de medir a evolução do paciente, mas mostrar ao mundo esse compromisso. Cosgrove imediatamente disseminou por todo o hospital sistemas de mensuração até então em uso numa área específica da organização. No início, somente gente de dentro tinha acesso a esses dados. Hoje, mesmo que ruins, são publicados no website da instituição. No começo, a mudança incomodou, sim, os médicos. Mas, quando passaram a ver a mensuração de desempenho como ferramenta para ajudar (e atrair) pacientes, e não só como incentivo ou castigo, acabaram se convertendo a idéia.

Líderes em outro centro médico americano, o Virginia Mason Medical Center, em Seattle, adotaram compromisso parecido com a idéia do paciente primeiro, mas foram um passo além ao tornar explícito o claro corolário disso: médicos e todos os demais vem em segundo. Na maioria dos centros de tratamento de câncer, por exemplo, é o doente que se desloca: para o laboratório, para consultórios médicos, para salas de quimioterapia. Já no novo centro oncológico do Virginia Mason, médicos, enfermeiros e pessoal de laboratório vêm ao doente, que é instalado em salas bem decoradas, banhadas pela luz natural que entra por grandes janelas. Já os médicos trabalham em baias sem janelas no miolo do edifício.

O centro oncológico do Virginia Mason adotou com tal veemência a visão do paciente primeiro que certos médicos da equipe preferiram sair. Já os que ficaram, mesmo com certas queixas, ajudaram a promover a recuperação financeira do centro e sua ascensão a um posto de destaque nos Estados Unidos.

Organize para obter resultados

Na saúde, fechar o foco no desempenho é mais radical do que parece. Na era que agora chega ao fim, reinou a tese de que a verdadeira qualidade não pode ser medida. Logo, o desempenho em geral era avaliado pelo volume e pela rentabilidade dos serviços prestados.

No mundo tradicional, a medicina é organizada em torno daquilo que os médicos fazem, não daquilo que os pacientes precisam. Hospitais, por exemplo, em geral contam com unidades separadas para cardiologia, cirurgia cardíaca, anestesiologia cardíaca e radiologia — e cada uma abriga médicos e outros profissionais que contribuem para o tratamento de problemas cardiovasculares. Cada unidade tem um médico que a chefia e pessoal administrativo próprio. Em muitos hospitais, cada unidade apresenta sua fatura de forma independente a companhias de seguros e pacientes. É por isso que, em certos países, o doente volta e meia se confunde com tantas contas.

Na prática, esses profissionais podem até trabalhar bem juntos no atendimento de cada paciente, mas custos maiores e disfunção são inerentes a estruturas administrativas separadas. Nessas unidades trabalham indivíduos com boas intenções, mas todos têm um território a defender — e, na medicina americana, ao menos, ameaçar o território de alguém é uma via rápida para o conflito destrutivo. Na falta de razões contundentes para mudar esse regime, estruturas ineficientes permanecem teimosamente de pé. E, para profissionais da saúde, abraçar uma reformulação radical do atendimento não seria nada natural — pois são organizados de acordo com sua especialidade e estão satisfeitos com isso.

Essa fragmentação em geral vai alem da divisão organizacional dos profissionais. Em muitos hospitais a relação entre médicos e gestores é abertamente antagônica e interesses financeiros estão mal alinhados ou em direto conflito. Em certos lugares, por exemplo, o hospital quer encurtar a estadia do paciente, pois recebe um montante fixo pela internação. Já o médico recebe a cada visita feita em dias distintos, de modo que quanto mais depressa o paciente tiver alta, menos ganha. A maioria dos planos de saúde não premia nenhum deles pelo esforço adicional que poderia impedir a reinternação da pessoa.

Uma organização pensada para oferecer alto desempenho (e não unidades de serviço) pode ajudar a romper essas barreiras. Agora que resultados começam a pesar, por exemplo, certas instituições estão adotando estruturas de atendimento definidas pelas necessidades do doente. Em muitos casos, o primeiro passo é reunir, num único lugar, médicos das várias especialidades que prestam o grosso do atendimento a uma população de doentes. Às vezes, a oportunidade para essa reunião é aberta pela construção de novas instalações dedicadas a pacientes com um mal específico, como doenças cardíacas ou câncer. Em geral, no entanto, dirigentes institucionais precisam lançar uma campanha elaborada de remanejamento, algo que leva anos, para colocar em maior proximidade médicos de diferentes disciplinas que atendem a uma mesma população de pacientes.

Mas essa medida, por si só, não vai garantir um esforço coordenado para melhorar o resultado para o paciente. É por isso que, na Cleveland Clinic, Delos Cosgrove aboliu departamentos tradicionais em favor de “institutos” definidos por doenças. Cosgrove percebeu que, no papel de cirurgião cardíaco, precisava colaborar mais com cardiologistas do que com cirurgiões especializados em outras partes do corpo. Logo, reuniu cardiologistas, cirurgiões cardíacos e cirurgiões vasculares numa nova unidade — o Instituto Cardiovascular — e começou a reunir e publicar informações sobre a evolução de pacientes ali.

Em instalações parecidas, como o Centro de Cabeça e Pescoço da M.D. Anderson Câncer Center, de Houston, nos EUA, os médicos ainda pertencem a um departamento especifico, mas estão em proximidade, em dois andares adjacentes. Com o tempo, passaram a se identificar mais com seu papel no centro oncológico do que com o departamento de origem.

O trabalho de organizar o tratamento em torno de necessidades do paciente — e não de interesses territoriais e políticos de médicos — também se da em escala menor. Em muitos dos principais hospitais de hoje, médicos das áreas cirúrgica, clínica e radiológica atuam juntos em procedimentos híbridos (como cirurgia cardíaca a céu aberto junto com cirurgia de correção de aneurisma abdominal) que, antigamente, teriam sido feitos separadamente.

Mudanças organizacionais de grande escala como essas exigem líderes fortes e um contexto cultural no qual possam liderar. Por razões óbvias, tais líderes conseguem alavancagem adicional se forem médicos e sua organização empregar seus médicos. Na Cleveland Clinic, todos os médicos possuem contratos renováveis de um ano, o que diz maravilhas sobre a importância do espírito de equipe.

Nem toda instituição terá a capacidade de liderança para realizar mudanças tão transformadoras. Mas, mesmo quando a integração de departamentos médicos não for viável, critérios de desempenho estrategicamente escolhidos podem promover o progresso.

REGRA GERAL

Em geral, o numero de gente que uma organização precisa capacitar para o aprimoramento de processos é a raiz quadrada do total de funcionários. Se tiver cem funcionários, sua organização precisa, portanto, treinar dez; se tiver 10 mil, precisa treinar cem. A maioria tem muito chão a percorrer antes de atingir essa meta.

Crie um sistema de mensuração

O primeiro desafio na criação de um sistema de mensuração de desempenho é levar todos na organização a falar a mesma “língua”: ou seja, a medir as mesmas coisas da mesma maneira. Sem isso, fica fácil, para quem resiste a idéia, contestar a validade de aparentes diferenças, algo até compreensível. Já quando o profissional acredita que maçãs estão sendo comparadas a maçãs, a pressão dos pares e outros incentivos ajudarão a disseminar melhores práticas (veja “Pressão dos pares para melhorar desempenho”).

A importância de uma linguagem comum fica clara no exemplo a seguir, que vem da minha própria organização. Infecções da corrente sanguínea são um problema grave e frequente em pacientes com cateteres intravenosos. Em Janeiro de 2008, o governo do estado americano de Massachusetts anunciou que começaria a divulgar publicamente as taxas de infecção de cada hospital. Cientes da iminente mudança, meus colegas passaram a incluir dados sobre infecções da corrente sanguínea nos boletins internos de qualidade compartilhados com o conselho e outros dirigentes da organização. Esses boletins mostravam diferenças evidentes nas taxas de dois de nossos hospitais, mas era difícil comparar as duas, pois cada hospital usava um método distinto de detecção de infecções.

Para checar se havia infecção, o hospital A coletava amostras de sangue pelo próprio cateter — método indolor e simples, mas mais sujeito a contaminação ou falsos positivos. O hospital B, por sua vez, fazia uma nova punção com seringa para coletar a amostra de sangue. Em geral, o hospital A tinha taxas de infecção maiores. Em sua defesa, os médicos ali sempre diziam que era devido a falsos positivos decorrentes do método específico de detecção. Quando por fim adotaram o método do hospital B, no entanto, viram que sua taxa de infecção seguia maior. Com ambos os hospitais usando o mesmo método de mensuração, acabou a disputa sobre a origem da diferença. Responsáveis pelo controle de infecções ficaram interessadíssimos em saber o que mais o hospital B fazia de forma diferente.

Quando os dados são uniformes e confiáveis, o líder pode defender a padronização de melhores práticas por toda a organização. Profissionais em todos os hospitais de nosso sistema decidiram, por exemplo, indicar com uma fita adesiva colorida todo cateter inserido em condições menos que ideais na emergência. Esse sinal informa a médicos e enfermeiros na unidade de tratamento intensivo que é preciso trocar o cateter assim que o paciente tiver sido estabilizado — algo que, esperamos, reduzira ainda mais as taxas de infecção.

Nesse caso, as normas não foram ditadas pela cúpula da organização. O que veio de cima foi à pressão para coletar dados da mesma forma em todos os hospitais e usá-los para melhorar o atendimento. A inovação ocorre na linha de frente do atendimento; nossos altos administradores jamais teriam pensado em usar fita adesiva colorida em cateteres. O que podiam fazer — e fizeram — foi criar um ambiente no qual essas ideias se difundem.

Por último, um sistema eficaz de mensuração requer métricas claras que detalhem custos e resultados de episódios de atendimento ou até de populações inteiras de pacientes. Esses dados podem ser usados com maior ou menor impacto. Embora trabalhadores de qualquer entorno, médico ou não, respondam a incentivos negativos (“Derrube a taxa de infecção para evitar humilhação”), incentivos positivos (“Derrube a taxa para prestar o melhor atendimento possível”) podem ser mais eficazes. Critérios de desempenho movidos a valores devem ser o foco de esforços internos de melhoramento — antes que a mensuração seja imposta aos líderes por atores externos.

Monte equipes eficazes

Trabalhar em equipe não é fácil para o médico, que ainda se enxerga como o herói solitário. A capacidade de desenvolver equipes e, no entanto, crucial para a liderança de toda sorte de instituição de saúde.

Vejamos, por exemplo, como a atuação de equipes na americana Geisinger Health System (de cujo conselho faço parte) ajudou a reduzir reinternações pela metade. Nos EUA, cerca de 20% dos pacientes internados pelo programa público Medicare voltam a ser internados menos de 30 dias depois de receber alta. Esse retorno deve ser tornado por aquilo que é: a incapacidade do sistema de saúde de satisfazer necessidades de pacientes. Muitas reinternações parecem inevitáveis, mesmo em retrospectiva, mas outras resultam da confusão em torno de medicamentos que o paciente deveria tomar, de sinais que poderiam sugerir futuras complicações, do momento em que o paciente deve voltar ao médico e por aí vai.

Nessa confusão reside uma oportunidade para instituições bem organizadas. O ingrediente óbvio da triunfal fórmula da Geisinger e instalar enfermeiros (“coordenadores de atendimento”) no consultório de médicos de atendimento primário. Esses coordenadores estão sempre em contato com pacientes cujo caso é complexo, sobretudo se estão prestes a receber alta do hospital ou se voltaram há pouco para casa. São eles que determinam, por exemplo, que paciente precisa consultar qual médico, e quando.

Já o ingrediente mais sutil desse modelo de sucesso — a formula secreta, por assim dizer — é uma cultura na qual coordenadores podem realmente coordenar o atendimento. Tal cultura exige que médicos sejam a um só tempo líderes e membros da equipe. Não faz muito, na estrita hierarquia de medicina o enfermeiro era visto basicamente como um técnico cuja função era obedecer a ordens. Nenhuma decisão era tomada sem o conhecimento e o consentimento de um médico. Achar que um enfermeiro pudesse ser um colaborador crucial de uma equipe clínica e tomar decisões de forma independente teria siso absurdo.

Isso está mudando, pois instituições nas quais o atendimento segue o modelo tradicional simplesmente não podem igualar o desempenho da Geisinger e de outras organizações nas quais o médico trabalha em equipe com os coordenadores de atendimento. Nessas organizações, o papel do coordenador é parecido ao do armador no basquete, com o médico atuando como uma combinação de técnico e capitão do time. Para conduzir essas equipes o médico precisa passar uma responsabilidade considerável aos enfermeiros. A recompensa é um desempenho melhor nos indicadores mais importantes para o profissional e seus pacientes.

Formar equipes é uma competência fundamental para líderes de grupos de medicina, sobretudo para os grupos cada vez mais comuns de 25 ou mais indivíduos, com médicos de várias especialidades. A maioria desses médicos entrou para um grupo não porque queria trabalhar em colaboração com outros para melhorar resultados, mas porque queria estar numa grande organização onde outra pessoa cuidasse de problemas administrativos, onde a presença de outros garantisse alguma proteção contra forças do mercado e onde fosse possível obter receita adicional com serviços de apoio como radiologia e exames laboratoriais.

Só que a sorte desses grupos e de outros em todas as áreas da medicina vai depender de líderes que possam melhorar o desempenho ao inspirar (ou exigir) o trabalho em equipe. Em muitos mercados, seguradoras estão computando custos e qualidade na concepção de planos de saúde, para que o individuo pague mais — ou não tenha cobertura — se quiser consultar médicos em grupos mais caros, menos eficientes ou de menor qualidade. Na falta de pacientes, obviamente o grupo fecha. A capacidade de montar equipes de alto desempenho confere vantagem competitiva.

Melhore processos

Uma equipe de saúde não pode encarar sua missão como circunscrita a um momento ou projeto. O dia em que taxas de reinternação forem baixas o suficiente, em que o socorro em infartos for rápido o suficiente ou em que todo processo de atendimento médico for eficiente e confiável o suficiente não vai chegar nunca. Logo, o líder deve trabalhar sem trégua para reduzir erros e desperdício e melhorar resultados — prevenindo reinternações, por exemplo, ou reduzindo o tempo entre a chegada do infartado ao pronto-socorro e a desobstrução da artéria. Para tanto, precisa adotar uma cultura de aprimoramento de processes e usar de forma disciplinada seus métodos, como a gestão enxuta, a coleta de dados, o brainstorming, a intervenção e a análise de impacto. Precisa, ainda, de um compromisso de longo prazo com sua aplicação. É possível conseguir essa cultura e essa experiência de uma série de maneiras.

Na saúde, o exemplo hoje clássico vem do Virginia Mason Medical Center, que uma década atrás corria o risco de perder mercado e seus melhores médicos para os vários hospitais de destaque na região. Num vôo em 2001, J. Michael Rona, diretor do centro, calhou de sentar ao lado de John Black, então diretor de gestão enxuta da Boeing. Black tinha mandado centenas de gerentes da Boeing ao Japão para estudar o Sistema Toyota de Produção (STP). Ao final do vôo, Rona estava convencido de que o Virginia Mason precisava fazer o mesmo.

Rona e o presidente do centro, um médico de nome Gary Kaplan, começaram a levar grupos de colegas ao Japão para cursos de imersão de duas semanas no STP. Rona e Kaplan avisaram a organização inteira que papéis de liderança provavelmente seriam reservados a gente (inclusive médicos) que fizesse o curso e adotasse as lições. Até perderam médicos muito bons por causa disso. Mas o Virginia Mason usou sua versão do STP para reduzir custos, melhorar a qualidade e o atendimento e reforçar sua saúde financeira.

É claro que nem todo hospital ou clínica pode ou deve despachar o pessoal para o Japão. Mas essas instituições podem achar (e estão achando cada vez mais) alternativas para incutir na organização a cultura do aprimoramento de processos. Muitas organizações enviaram altos dirigentes e gerentes de nível médio para treinamento na americana Intermountain Healthcare, de Utah. Ali, o diretor de qualidade. Brent James, administra um curso muito respeitado de melhoria de processos. Generoso, James já ajudou algumas organizações, incluindo a minha, a lançar um programa próprio para disseminação desse conhecimento.

A capacidade de desenvolver equipes é crucial para a liderança de toda instituição de saúde.

Derrube barreiras culturais

Por que é tão difícil promover a colaboração num campo que atrai gente idealista, interessada em fazer o bem? Por que a mensuração do desempenho e o aprimoramento são coisas tão problemáticas para alguns dos indivíduos mais brilhantes, mais esforçados e mais competitivos da sociedade? Por que o conceito de eficiência e rejeitado por profissionais e instituições que se beneficiariam caso isso melhorasse o serviço que prestam?

Uma palavra diz tudo: autonomia.

Barreiras culturais a transformação do setor de saúde — a resistência de médicos a serem avaliados, a necessidade de serem “perfeitos”, sua relutância em criticar colegas, sua resistência ao trabalho em equipe — refletem a profunda convicção de que a autonomia do médico é crucial para a qualidade na saúde. O médico sempre se enxergou como o único defensor do paciente, com o resto do mundo dividido entre aqueles que ajudam e aqueles que atrapalham. Armar um escândalo para defender o interesse de pacientes era uma conduta aceitável. Alguns de meus colegas mais respeitados confessaram o desejo de que ninguém nem sequer falasse com seus pacientes, salvo por intermédio deles.

Por mais louvável que seja o fervor pela causa do paciente, a autonomia do médico não significa qualidade. Para que mudanças estruturais e operacionais — avaliação de desempenho, melhoria de processos, trabalho em equipe — se disseminem, o médico deve aceitar que cuidar bem do paciente não é o mesmo que ser onisciente ou controlador. Para que a ideia seja aceita, o líder pode usar três abordagens:

Apelar ao melhor lado das pessoas.

Quem decide trabalhar na saúde quer passar a vida fazendo algo bom: ajudar quem está doente. O altruísmo é crucial para a identidade do médico é a de praticamente todo mundo na medicina. Um líder da área da saúde não vai ter sucesso se não deixar explícito que partilha dessa aspiração e quer torná-la realidade. Em duas ocasiões nos últimos anos, vi James J. Mongan — que se aposentou há pouco da presidência da Partners HealthCare — observar, calado, enquanto colegas discutiam se uma determinada pratica seria adotada em toda a nossa rede de médicos. A primeira foi em 6 de Janeiro de 2005, quando considerávamos a possibilidade de tornar obrigatório o uso de prontuários eletrônicos. A segunda foi em 6 de marco de 2007, quando considerávamos inscrever automaticamente o paciente com insuficiência cardíaca num programa de gestão do problema em vez de esperar que o médico o fizesse.

Achávamos que ambas as medidas ajudariam a melhorar o atendimento ao paciente. Mas hesitávamos, pois sabíamos que alguns médicos ficariam contrariados ao perder parte da autonomia. Podiam deixar a rede e levar consigo seus pacientes. Mas, nos dois casos, Mongan encerrou a discussão dizendo: “Creio realmente que isso e o certo a fazer”. Ninguém podia rebater tal argumento, e ninguém o fez. Na medicina, mais do que na maioria das outras áreas, o chamado de um líder importante a fazermos o que é “certo” pode ser um coelho na cartola.

Divulgar dados.

Ao ver avaliações de desempenho, o médico corre a questionar os dados e a detectar problemas metodológicos com a informação. Mas o fato e que e fascinado por dados e fica vidrado nisso. No setor de saúde, Brent James talvez seja o supremo mestre dos dados; há décadas colocou a coleta e a partilha de informações sobre qualidade e eficiência no centro da cultura da Intermountain Healthcare. Em vez de fazer um ataque frontal a autonomia dos médicos, James derruba sua resistência a mudança ao mostrar como seu desempenho difere da norma.

Definir estratégia em torno de necessidades do paciente.

O que os médicos sabem e fazem esta constantemente mudando, mas as necessidades do paciente permanecem as mesmas. O individuo adoece, se preocupa e espera ser curado ou livrado do sofrimento. E para satisfazer suas necessidades que o setor de saúde existe. Vimos que os líderes de organizações como as americanas Cleveland Clinic, Intermountain Healthcare e Virginia Mason Medical Center fizeram da abstrata noção do paciente em primeiro lugar uma sólida estratégia organizacional.

A migração para um sistema voltado a eficiência é movido por resultados exige que o médico se adapte ou até mesmo rejeite certas formas de trabalho enraizadas no passado da medicina. Por mais difícil que seja a mudança, acredito que a nova geração de líderes irá conseguir. Aliás, essa geração não tem escolha. Defender a ordem vigente não é mais uma estratégia viável, mesmo a curto prazo.


Fonte: Revista Harvard Business Review Brasil, por Thomas H. Lee