Novos conceitos da pecuária para preservação das bacias hidrográficas

Apesar de a água ser um dos elementos essenciais para a vida, o ser humano nunca se preocupou muito com a sua preservação, em razão de sua aparente inesgotabilidade. Porém, estudos têm indicado que um dos problemas mais críticos que a humanidade enfrentará nos próximos anos será a indisponibilidade de água e a necessidade de cuidados com as bacias hidrográficas.

A consciência quanto à importância dessa substância, contudo, ainda não chegou ao cidadão comum e, tampouco, induziu ao estabelecimento de políticas públicas voltadas à sua conservação.

Preservar a água é um processo complexo, pois depende, fundamentalmente, da conservação dos outros recursos naturais existentes no planeta.

O comportamento da água em sua superfície, ou seja, como a fase terrestre do ciclo hidrológico se manifesta, é um reflexo direto das condições e do uso do local por onde ela emana. A alteração da paisagem e a degradação do solo reduzem a produtividade de água e afetam sua disponibilidade e sua qualidade (Bossio et al, 2010)

Quando o assunto é abordado, a maioria das pessoas pensa apenas na “água visível”, ou seja, naquela que pode ser usada diretamente para os mais variados fins. E é justamente ela que está se esgotando.

Poucos se dão conta de que o ciclo hidrológico é o sistema circulatório da biosfera, o qual proporciona a geração dos chamados serviços ambientais – fundamentais para a sobrevivência da humanidade.

A diminuição da disponibilidade de água está também afetando os processos ecológicos da biosfera, responsáveis pelos chamados serviços ambientais (Gordon et al, 2010).

Os serviços ambientais podem ser classificados em quatro categorias:
a) produção: de alimentos, de grãos, de fibras, de carne etc.;
b) regulação: controle de pragas, polini-zação, clima;
c) culturais: valores recreacionais, espirituais e estéticos;
d) suporte: processos ecológicos básicos, como formação do solo, proteção da superfície do solo e da infiltração pela cobertura vegetal, produção de oxigênio, absorção de gás carbônico, desnitrificação, dispersão de sementes, polinização.

Mesmo com a implementação de práticas adequadas de manejo do solo que visam à produção agropecuária, não é tarefa fácil evitar o aumento do escoamento superficial e da erosão, que arrastam nutrientes, matéria orgânica e sedimentos para os cursos de água e lagos, alterando a qualidade da água e o funcionamento do ecossistema aquático.

Nesse sentido, o chamado ecossistema ripário – resultado da interação da vegetação ciliar evolutivamente adaptada às áreas ribeirinhas saturadas – desempenha papel fundamental para o controle desses possíveis efeitos. Tal ecossistema tem, também, papel decisivo na perma-nência da biota aquática.

Desta maneira, a crise da água, principalmente quando se trata da diminuição da vazão e alteração do regime de rios e ribeirões, da seca de córregos, assim como da alteração da qualidade da água – em grande parte causada pela manipulação da paisagem pelo homem –, tem muito mais implicações para a saúde da biosfera como um todo do que para o abastecimento da população.

AGROPECUÁRIA X ÁGUA

Falar sobre a relação entre atividade agropecuária e água requer, evidente-mente, muita responsabilidade e embasamento, já que dois componentes essenciais para a vida são o resultado dessa discussão: alimento e água.

O tema fica ainda mais complexo em razão de a agricultura, principalmente pela irrigação, ser responsável por 70% de todo o consumo de água pela humanidade. Além disso, a manipulação da paisagem visando preparar a área para o desenvolvimento da agricultura resulta em mudanças nos processos hidrológicos de superfície; isso reduz a produtividade de água.

Assim, uma carga maior de nutrientes, agroquímicos e sedimentos pode chegar aos cursos de água e, dessa forma, alterar sua qualidade.

A atividade agropecuária ocupa cerca de 40% da superfície terrestre e a alteração da paisagem – resultado da expansão da agricultura – foi, sem dúvida, um dos fatores responsáveis pela modificação do ciclo hidrológico, tanto em termos quantitativos quanto qualitativos (Gordon et al, 2011).

Em termos quantitativos, o padrão da evapotranspiração global mudou, diminuindo nas áreas desmatadas e aumentando em áreas irrigadas. O elevado uso consumptivo de água para a irrigação, por sua vez, reduz o fluxo dos rios e ribeirões.

Já o aumento da erosão e a degradação da matéria orgânica do solo, ao longo dos ciclos de produção, tornam menor a escala de produtividade de água, principalmente devido à diminuição da infiltração, ao aumento do escoamento superficial e à redução da capacidade de seu armazenamento (Bossio et al, 2011).

E parece inevitável a necessidade de aumento da área agrícola, previsto inclusive de ocorrer a uma taxa de 0,8% ao ano, o que equivaleria a um aumento do consumo de água da ordem de 30% a 40% até 2050 (Gordon et al, 2011).

Outro fator que também é muito importante na avaliação dos efeitos das atividades agropecuárias sobre a água diz respeito ao planejamento da ocupação dos espaços produtivos da paisagem visando à produção agropecuária.

Não é fácil tentar incutir a necessidade de proteção das áreas ripárias onde há a presença da vegetação ciliar, que em nosso país, por força do novo Código Florestal, ficou restrita a uma largura arbitrária fixa e simétrica ao longo dos córregos e ribeirões, assim como ao redor de nascentes.

Mas na natureza a ocorrência dessas áreas, denominadas hidrologicamente sensíveis, não guarda nenhuma simetria, sendo função da heterogeneidade natural da paisagem, em termos de geologia, geomorfologia, solos e clima.

Além disso, também pode haver áreas saturadas nas partes mais elevadas do terreno, e não apenas nas margens e cabeceiras dos cursos de água. Em ambos os casos, são áreas de descarga ou de afloramento dos fluxos subsuperficiais de água.

Por essa razão, devem ser protegidas, e não drenadas ou usadas. Nenhuma microbacia hidrográfica é exatamente igual à outra e, portanto, não há como estabelecer prescrições generalizadas para realizar seu mapeamento.

Por outro lado, o barramento dos cursos de água, tão comum em áreas rurais, também é responsável pela ruptura da chamada conectividade hidrológica, ou seja, a propriedade que reflete a eficácia do fluxo de água entre os elementos do ecossistema, que, por sua vez, afeta a geração de serviços ambientais (Creed et al, 2011)

Assim, é necessário garantir a preservação da água, a qualidade ambiental e a produção de alimentos – e estas são metas que têm de ser abordadas de forma integrada. Tratar cada uma separadamente causa conflitos e prejuízos para todos (Falkenmark & Folke, 2002).

A água, em termos de suas demandas e funções, é o componente fundamental que possibilita relacionar o uso da terra (visando à produção) com os impactos ambientais decorrentes. Esse conceito deve ser a base para o planejamento de ações de manejo que busquem a sustentabilidade.

Por exemplo, quando direciona-se melhor o uso da água, procedimento fundamental para a busca da agricultura sustentável, a degradação da área é evitada.

Há estimativas de que cerca de 40% da área agrícola mundial encontram-se moderadamente degradadas, enquanto que cerca de 9% estão já em forte estado de deterioração (Bossio et al, 2011). E a destruição da terra, como já afirmado, afeta tanto a produtividade agrícola quanto a disponibilidade de água

DESAFIOS

A sustentabilidade ocorre em diferentes dimensões e escalas. A conceituação proposta é fundamental para o estabelecimento de estratégias sustentáveis de manejo agropecuário. Por exemplo, é essencial que a dimensão econômica da sustentabilidade, inerente à produção agropecuária, possa abranger também a dimensão ecológica.

Nesse sentido, uma estratégia que vem ganhando apoio está relacionada com o chamado pagamento por serviços ambientais. Trata-se de política pública questionável, no mínimo, por várias razões.

A principal delas reside no fato de que ações isoladas – como revegetação da área ciliar – não são, por si só, garantia de inclusão de toda a dimensão ecológica envolvida na conservação ambiental.

Outro argumento diz respeito ao alcance do manejo sustentável que, por definição, requer mudanças de comportamentos em diversos âmbitos, principalmente culturais, o que é diferente de se remunerar uma boa ação.

Em cada microbacia, as fontes de água são as chuvas, que podem ser dissipadas em “água verde”, ou evapotranspiração, que faz as plantas crescerem e possibilita a produção agropecuária, e “água azul”, que é a água superficial, visível e responsável por abastecer a humanidade e gerar os serviços ambientais.

O manejo sustentável tem necessariamente de manter o equilíbrio entre estes dois fluxos de água.


Fonte: Visão Agrícola, por Walter de Paula Lima